Mais
uma semana, mais um escândalo para alimentar as redes sociais. Agora foi uma
rapariga paquistanesa que foi impedida de jogar basquete porque se apresentou
com uma t-shirt de mangas compridas debaixo do equipamento regulamentar. Os
árbitros do jogo impediram-na de jogar evocando os regulamentos. A rapariga,
Fatima de seu nome, recusou-se a tirar a t-shirt de mangas compridas evocando a
sua fé. O problema foi rapidamente resolvido pela Federação Portuguesa de
Basquete, que entregou a Fatima um equipamento para a prática de basquete que respeita
os preceitos islâmicos.
Não
vivêssemos nós no tempo das redes sociais, onde qualquer pequeno problema local
é ampliado a escândalo nacional, e todo este assunto estaria arrumado.
Infelizmente passei o dia a ler no meu feed pessoas a debitar disparates sobre
Fatima Habib e a sua fé.
Os
argumentos em geral podem-se dividir em dois: “eles” aqui têm que cumprir as
nossas regras e as nossas tradições e lá na terra “deles” também não deixam
construir igrejas ou as mulheres andar de calções. Deixa-me sempre um pouco surpreendido
que um assunto que de facto levanta questões sérias acabe sempre em dois
argumentos tão idiotas como estes.
Antes
de mais fico sempre espantado como num país onde a esmagadora maioria das pessoas
é incapaz de respeitar uma prioridade na estrada ou de apanhar o cocó dos cães
no chão, de repente se começa a ter tanto respeito pela sacralidade das regras.
Aparentemente cumprir à risca o regulamento da Federação Portuguesa de Basquete
passou a ser uma questão civilizacional.
Depois,
se é verdade que o tal regulamento é uma regra nossa, o direito à liberdade
religiosa também o é. Com a diferença que um é feito por uma federação
desportiva e o outro pela Assembleia Constituinte.
Por
fim a questão da cultura e tradição é especialmente disparatada. A sério que
raparigas de trezes anos jogarem basquete de calções e manga à cava faz parte
da nossa tradição? Um desporto americano, que segue as regras de vestuário
americanas, passou a fazer parte tão integral da nossa cultura, que qualquer
desrespeito a estas regras chega para colocar em perigo a civilização? É como
quando argumentam contra o burquini falando de tradição, como se o biquíni fosse
mais tradicional que as mulheres da Nazaré na praia vestida dos pés à cabeça!
E
já agora, para os mais esquecidos, relembro que a presença islâmica em Portugal
é bastante mais antiga e bastante mais marcante na nossa cultura que o basquete
feminino…
Já
o argumento do lá na terra “deles” é também fraco, mas introduz um pensamento perigoso.
O argumento é disparatado porque lembra um pouco as crianças que se portam mal
nas aulas e usam como desculpa os amigos que também o fazem. Quase apetece
responder “mas eu não sou pai do Paquistão!”. É evidente que o atropelo aos direitos
humanos em países muçulmanos, sobretudo no que toca à liberdade religiosa e aos
direitos das mulheres, não serve como argumento para fazermos o mesmo. Acusar o
Paquistão de não deixar as mulheres usar calções para depois proibir as
mulheres de se taparem é bastante contra-senso.
Mas
este argumento é perigoso porque legitima o poder do Estado em interferir na
liberdade religiosa. Quando afirmamos que Portugal deve restringir a liberdade
religiosa porque outros países também o fazem, estamos a afirmar que a
liberdade religiosa é um direito que, de alguma maneira, está à disposição do
Estado. Que o Estado pode dar ou retirar.
Ora,
a o direito à liberdade religiosa, ou seja de praticar a sua fé sem ser
discriminado por ela, é um direito fundamental e inato à pessoa. Não é
concedido pelo Estado, como de resto não o são nenhum dos direitos
fundamentais, mas apenas reconhecido e protegido por este. Por isso permitir ao
Estado que restrinja a liberdade religiosa de uma pessoa ou de um grupo é
reconhecer ao Estado legitimidade para o fazer a qualquer pessoa ou grupo, como
se esse direito emanasse dele e não fosse prévio a ele.
Se
reconhecemos ao Estado legitimidade para restringir a liberdade religiosa de
uma muçulmana, reconhecemos que o Estado tem legitimidade para impor uma
conduta íntima e moral aos cidadãos. Convém não esquecer que há cem anos em
Portugal os sacerdotes não podiam andar de batina, nem os religiosos com os
seus hábitos!
Evidentemente
que a liberdade religiosa tem os seus limites, como qualquer outro direito
fundamental. Para começar, a liberdade religiosa pode ceder a outros direitos fundamentais
de maior valor: por exemplo a direito à segurança colectiva pode obrigar a que
as mulheres não possam usar burca em locais públicos impedido assim a sua
identificação. Para além disso a liberdade religiosa não pode impor á sociedade
um sacrifício desproporcional: por exemplo o impedimento de os Adventistas
trabalhar ao sábado não pode parar todo o país nesse dia. Por fim, a própria
realidade restringe a liberdade religiosa: se uma religião não permitir a uma
pessoa nadar, esta não pode ser nadadora olímpica.
Por
isso aquilo que me parece razoável discutir no caso de Fátima Habib é se o
regulamento de vestuário da Federação Portuguesa de basquete é mais importante
que o direito de Fatima a jogar basquete sem desrespeitar a sua fé. A resposta
não é simples, não é igual para todos os desportos e merece ser debatido. A mim
parece-me que estiveram mal os árbitros que não a deixaram jogar, que houve
alguma negligência por parte do clube e da família da jogadora ao não
investigar para saber se havia maneira de conciliar as duas coisas (pelos
vistos havia), e que esteve bem a Federação quando criou meios para que Fatima
jogasse dentro dos regulamentos. Percebo que é possível defender outra posição.
O que é absurdo são os disparates que se têm lido nas redes sociais e que
parecem ter que chegado a alguns comentadores da comunicação social.
Muito
se tem falado da guerra de culturas entre o Islão e o Ocidente. E é evidente
que existe uma enorme diferença entre a nossa cultura, onde subsiste resquícios
da herança cristã e a cultura islâmica. Desde logo no que diz respeito à
liberdade religiosa e aos direitos das mulheres. Mas esta guerra não será ganha
se rejeitarmos as bases sobre as quais o Ocidente foi construído. Não é
possível ganhar uma guerra cultural se abdicamos da nossa cultura. Permitir que
Fatima Habib jogue basquete com equipamento que respeite a sua fé não é uma
cedência ao Islão, pelo contrário, é afirmar a diferença entre o Ocidente e o
Islão. Defender a liberdade dos muçulmanos praticarem a sua fé sem serem discriminados
é afirmar a dignidade de cada Homem, é defender a liberdade de cada pessoa, ou
seja, é lutar pelas raízes e pelos ideais que permitiram construir aquilo a que
chamamos a nossa cultura. Que uma rapariga muçulmana possa jogar basquete no
Algarve não é um vitória do Islão, é uma vitória do Ocidente.
Caro amigo. Apreciei o seu artigo, demasiado extenso para o meu gosto, mas li na totalidade. Este caso é mais um aproveitamento que interessa
ResponderEliminara alguém, não sei se ao clube onde joga, aos pais, ou aos sectaristas, mas a verdade é que muitos aproveitaram para dizer bem ou mal e até fazer campanha. Sinceramente lamento. O desporto tem regras, antes regulamentos, sobretudo os desportos colectivos. Qualquer desporto que utilize equipamentos tem especificado modelos , cores, etc. Neste caso, esta jovem poderia até ser portuguesa e utilizar um equipamento diferente das demais, é evidente que qualquer árbitro de um jogo não permitiria isso. Nada tem a ver com a religião que ela professa, mas da forma como se apresentava. Ao desporto o que é do desporto, à religião o que é da religião, mas por amor de Deus não vamos meter as "mãos pelos pés". Trabalhei 20 anos como jornalista desportivo, tenho carteira profissional, e este caso como outros que por vezes surgem só interessam a quem pretende tirar dividendos disso. Um abraço amigo.