As inqualificáveis
declarações da Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, gravíssimas e merecedoras
de uma profunda investigação por parte das autoridades, foram ao mesmo tempo
muitíssimo importantes para se perceber claramente do que falamos quando
discutimos a legalização da eutanásia.
Ao contrário do que
os jornais disseram a bastonária não afirmou que no Sistema Nacional de Saúde
se praticava eutanásia. O que a bastonária relatou foi que alguns médicos
praticavam o crime de homicídio. Em nenhum momento das suas declarações foi
referido a vontade do doente.
Isto é importante
porque torna claro um ponto que até agora tem estado ausente deste debate: que
a eutanásia é uma forma de homicídio.
Evidentemente que é
um homicídio a pedido da vítima (como aliás está previsto no Código Penal), mas
para existir eutanásia é sempre preciso uma acção que ponha fim a vida de outrem. Por
isso a questão essencial da eutanásia não é a autonomia individual nem se a
vida é um bem disponível. Estes temas são importantes na discussão sobre o
suicídio. Mas na eutanásia o
ponto essencial é: pode ser legal o homicídio? O pedido da vítima afasta a
ilicitude do acto? Mais ainda: pode o Estado dispor sobre a vida dos seus
cidadãos? Pode o Estado dar poder legal aos seus funcionários para executar
cidadãos?
Imaginemos que a
eutanásia era legal em Portugal. Duas pessoas pedem para ser mortas. O seu caso
iria ser avaliado (provavelmente por vários médicos e outros especialistas).
Num caso decidem que de facto a vida daquela pessoa já não tem dignidade e por
isso pode ser morta. Administram certas substâncias à pessoa e ela morre. No
outro caso decidem que a vida da pessoa ainda tem dignidade, logo ela não pode
ser morta. É assim que
acontece em todos os países onde a eutanásia é legal.
Ou seja, o Estado
chama a si o poder de decidir quem merece a morte. O Estado reclama o poder de matar
os seus cidadãos. A decisão sobre não morrer caberá sempre (pelo menos por enquanto)
à vítima. Mas quem realmente decide quem pode morrer é o Estado.
Evidentemente que
as razões para matar alguém que o pede são as melhores: o seu sofrimento, o
facto da pessoa querer morrer, o facto de já não ter uma vida digna, etc. Mas
não posso deixar de perguntar: Queremos mesmo dar ao Estado o poder de decidir
sobre a vida dos seus cidadãos? Queremos mesmo conceder ao Estado o poder de
matar? Queremos mesmo ter funcionários públicos a executar doentes? Porque é
disto que falamos quando discutimos a legalização da eutanásia.
As declarações da
Bastonária da Ordem dos Enfermeiros foram sem dúvida chocantes. Mas ainda bem
que as fez, porque permitiu levantar o véu sobre o que realmente é a eutanásia:
uma forma de homicídio, onde a vontade da vítima depende do consentimento do
carrasco. E esse carrasco somos todo nós.