quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Deixem Fatima jogar.



Mais uma semana, mais um escândalo para alimentar as redes sociais. Agora foi uma rapariga paquistanesa que foi impedida de jogar basquete porque se apresentou com uma t-shirt de mangas compridas debaixo do equipamento regulamentar. Os árbitros do jogo impediram-na de jogar evocando os regulamentos. A rapariga, Fatima de seu nome, recusou-se a tirar a t-shirt de mangas compridas evocando a sua fé. O problema foi rapidamente resolvido pela Federação Portuguesa de Basquete, que entregou a Fatima um equipamento para a prática de basquete que respeita os preceitos islâmicos. 

Não vivêssemos nós no tempo das redes sociais, onde qualquer pequeno problema local é ampliado a escândalo nacional, e todo este assunto estaria arrumado. Infelizmente passei o dia a ler no meu feed pessoas a debitar disparates sobre Fatima Habib e a sua fé.

Os argumentos em geral podem-se dividir em dois: “eles” aqui têm que cumprir as nossas regras e as nossas tradições e lá na terra “deles” também não deixam construir igrejas ou as mulheres andar de calções. Deixa-me sempre um pouco surpreendido que um assunto que de facto levanta questões sérias acabe sempre em dois argumentos tão idiotas como estes. 

Antes de mais fico sempre espantado como num país onde a esmagadora maioria das pessoas é incapaz de respeitar uma prioridade na estrada ou de apanhar o cocó dos cães no chão, de repente se começa a ter tanto respeito pela sacralidade das regras. Aparentemente cumprir à risca o regulamento da Federação Portuguesa de Basquete passou a ser uma questão civilizacional.
Depois, se é verdade que o tal regulamento é uma regra nossa, o direito à liberdade religiosa também o é. Com a diferença que um é feito por uma federação desportiva e o outro pela Assembleia Constituinte.

Por fim a questão da cultura e tradição é especialmente disparatada. A sério que raparigas de trezes anos jogarem basquete de calções e manga à cava faz parte da nossa tradição? Um desporto americano, que segue as regras de vestuário americanas, passou a fazer parte tão integral da nossa cultura, que qualquer desrespeito a estas regras chega para colocar em perigo a civilização? É como quando argumentam contra o burquini falando de tradição, como se o biquíni fosse mais tradicional que as mulheres da Nazaré na praia vestida dos pés à cabeça!

E já agora, para os mais esquecidos, relembro que a presença islâmica em Portugal é bastante mais antiga e bastante mais marcante na nossa cultura que o basquete feminino…
Já o argumento do lá na terra “deles” é também fraco, mas introduz um pensamento perigoso. O argumento é disparatado porque lembra um pouco as crianças que se portam mal nas aulas e usam como desculpa os amigos que também o fazem. Quase apetece responder “mas eu não sou pai do Paquistão!”. É evidente que o atropelo aos direitos humanos em países muçulmanos, sobretudo no que toca à liberdade religiosa e aos direitos das mulheres, não serve como argumento para fazermos o mesmo. Acusar o Paquistão de não deixar as mulheres usar calções para depois proibir as mulheres de se taparem é bastante contra-senso.

Mas este argumento é perigoso porque legitima o poder do Estado em interferir na liberdade religiosa. Quando afirmamos que Portugal deve restringir a liberdade religiosa porque outros países também o fazem, estamos a afirmar que a liberdade religiosa é um direito que, de alguma maneira, está à disposição do Estado. Que o Estado pode dar ou retirar.

Ora, a o direito à liberdade religiosa, ou seja de praticar a sua fé sem ser discriminado por ela, é um direito fundamental e inato à pessoa. Não é concedido pelo Estado, como de resto não o são nenhum dos direitos fundamentais, mas apenas reconhecido e protegido por este. Por isso permitir ao Estado que restrinja a liberdade religiosa de uma pessoa ou de um grupo é reconhecer ao Estado legitimidade para o fazer a qualquer pessoa ou grupo, como se esse direito emanasse dele e não fosse prévio a ele. 

Se reconhecemos ao Estado legitimidade para restringir a liberdade religiosa de uma muçulmana, reconhecemos que o Estado tem legitimidade para impor uma conduta íntima e moral aos cidadãos. Convém não esquecer que há cem anos em Portugal os sacerdotes não podiam andar de batina, nem os religiosos com os seus hábitos!

Evidentemente que a liberdade religiosa tem os seus limites, como qualquer outro direito fundamental. Para começar, a liberdade religiosa pode ceder a outros direitos fundamentais de maior valor: por exemplo a direito à segurança colectiva pode obrigar a que as mulheres não possam usar burca em locais públicos impedido assim a sua identificação. Para além disso a liberdade religiosa não pode impor á sociedade um sacrifício desproporcional: por exemplo o impedimento de os Adventistas trabalhar ao sábado não pode parar todo o país nesse dia. Por fim, a própria realidade restringe a liberdade religiosa: se uma religião não permitir a uma pessoa nadar, esta não pode ser nadadora olímpica.

Por isso aquilo que me parece razoável discutir no caso de Fátima Habib é se o regulamento de vestuário da Federação Portuguesa de basquete é mais importante que o direito de Fatima a jogar basquete sem desrespeitar a sua fé. A resposta não é simples, não é igual para todos os desportos e merece ser debatido. A mim parece-me que estiveram mal os árbitros que não a deixaram jogar, que houve alguma negligência por parte do clube e da família da jogadora ao não investigar para saber se havia maneira de conciliar as duas coisas (pelos vistos havia), e que esteve bem a Federação quando criou meios para que Fatima jogasse dentro dos regulamentos. Percebo que é possível defender outra posição. O que é absurdo são os disparates que se têm lido nas redes sociais e que parecem ter que chegado a alguns comentadores da comunicação social.

Muito se tem falado da guerra de culturas entre o Islão e o Ocidente. E é evidente que existe uma enorme diferença entre a nossa cultura, onde subsiste resquícios da herança cristã e a cultura islâmica. Desde logo no que diz respeito à liberdade religiosa e aos direitos das mulheres. Mas esta guerra não será ganha se rejeitarmos as bases sobre as quais o Ocidente foi construído. Não é possível ganhar uma guerra cultural se abdicamos da nossa cultura. Permitir que Fatima Habib jogue basquete com equipamento que respeite a sua fé não é uma cedência ao Islão, pelo contrário, é afirmar a diferença entre o Ocidente e o Islão. Defender a liberdade dos muçulmanos praticarem a sua fé sem serem discriminados é afirmar a dignidade de cada Homem, é defender a liberdade de cada pessoa, ou seja, é lutar pelas raízes e pelos ideais que permitiram construir aquilo a que chamamos a nossa cultura. Que uma rapariga muçulmana possa jogar basquete no Algarve não é um vitória do Islão, é uma vitória do Ocidente.

1 comentário:

  1. Caro amigo. Apreciei o seu artigo, demasiado extenso para o meu gosto, mas li na totalidade. Este caso é mais um aproveitamento que interessa
    a alguém, não sei se ao clube onde joga, aos pais, ou aos sectaristas, mas a verdade é que muitos aproveitaram para dizer bem ou mal e até fazer campanha. Sinceramente lamento. O desporto tem regras, antes regulamentos, sobretudo os desportos colectivos. Qualquer desporto que utilize equipamentos tem especificado modelos , cores, etc. Neste caso, esta jovem poderia até ser portuguesa e utilizar um equipamento diferente das demais, é evidente que qualquer árbitro de um jogo não permitiria isso. Nada tem a ver com a religião que ela professa, mas da forma como se apresentava. Ao desporto o que é do desporto, à religião o que é da religião, mas por amor de Deus não vamos meter as "mãos pelos pés". Trabalhei 20 anos como jornalista desportivo, tenho carteira profissional, e este caso como outros que por vezes surgem só interessam a quem pretende tirar dividendos disso. Um abraço amigo.

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