Vi
ontem a noticia de que a policia de Nice obrigou uma mulher a despir parte da
sua roupa na praia. Isto porque supostamente estaria de burquini (de facto não
estava) o que é proibido naquela cidade.
Antes
de mais, não posso deixar de me espantar que a mesma polícia que deixou um
camião cheio de armas entrar numa zona de trânsito proibido onde estavam
dezenas de milhares de pessoas porque o condutor afirmou que ia vender gelados,
consiga agora detectar uma mulher demasiado vestida na praia. Estamos diante de
um enorme evolução na luta contra o terrorismo...
Tenho
ouvido duas justificações para esta medida idiota: a primeira é a defesa da
liberdade da mulher. Segundo os adeptos desta teoria, as mulheres que usam
burquini só o fazem porque são obrigadas pelos maridos, pelos irmão, pelos
filhos. Por isso decidiu a autoridade que em vez de estas mulheres serem
oprimidas pelos seus familiares homens, devem-no ser pelo Estado. A solução não
é, como talvez alguma pessoa mais simplista possa pensar, investigar os casos de
abuso sobre as mulheres. A solução passa por obrigar todas as mulheres, as que
o querem e as que não o querem, a não usar tal peça de vestuário. Assim,
através de uma norma que proíbe a mulher de se vestir como entende, a república
tenciona tornar as mulheres livres. Quer queiram quer não queiram!
Claro
que isto em nada ajudará as mulheres que são obrigadas pelos seus parentes
masculinos a taparem-se. Como é evidente um homem que acha que pode obrigar a
mulher, ou a irmã, ou a mãe a vestir certa peça de roupa, não vai mudar de ideias
só porque passou a ser proibido. A única consequência para essas mulheres
oprimidas é que em vez de irem à praia de burquini não vão à praia de todo!
A
segunda "desculpa" para esta norma é o respeito pelo secularismo, razão
pela qual uma mulher não pode andar com um símbolo religioso vestido. Antes de
mais convém esclarecer que o burquini não é um símbolo religioso. É um fato de
banho que tapa todo o corpo excepto a cara, razão pela qual pode ser usada
pelas mulheres muçulmanas. Contudo, não é um exclusivo daquelas que acreditam
no Islão: também é usado por mulheres com problemas de pele ou que simplesmente
não se querem expor em demasia aos raios do sol. Não posso por isso deixar de
me perguntar se a proibição de usar burquini é só para as muçulmanas ou é para
todas as mulheres? Se a polícia quiser obrigar uma mulher a despir o burquini e
esta responder que tem uma doença de pele é expulsa da praia? Ou pode apresentar
um atestado médico? Se disser que não é muçulmana, já não há problema?
Porque
aparentemente o único problema, para os que defendem esta argumentação, é que
não se pode andar com vestes religiosas em público. Ou melhor, com vestes
religiosas islâmicas. Porque, tanto quanto foi noticiado, ninguém proibiu o uso
dos hábitos religiosos, ou das vestes talares, ou dos turbantes dos sikh, ou do
talit e do quipá judaico, ou da túnica budista. Apenas do burquini.
Ou
seja, o problema é mesmo com o Islão. Isto porque existem grupos terroristas
islâmicos que têm espalhado o terror pelo Europa. Por isso, por alguma centenas
de terroristas, que representam alguns milhares de islâmicos, a França declara
que a fé de mil milhões de pessoas em todo o mundo não é compatível com os
valores da república. A fé do polícia que morreu no ataque ao Charlie Hebdo, a
fé do merceeiro que escondeu judeus na sua loja durante um ataque terrorista, a
fé dos professores universitários do Iraque mortos por defenderem a liberdade
dos cristãos, a fé daquele homem que morreu com os mártires coptas junto ao
mar, a fé dos reis de Marrocos e da Jordânia que publicamente condenaram e
atacaram o Estado Islâmico, a fé dos frequentadores da Mesquita de Saint-Etienne-du-Rouvray
que recusaram o enterro dos assassinos do padre Hamel. A fé de milhões de
pessoas que nada tem a ver com o terrorismo ou com o Estado Islâmico.
Cheguei
a ler num jornal português a opinião de um iluminado, que já vi repetida em
outros lados (as frases curtas e idiotas usadas para explicar problemas
complexos têm cada vez mais tendência a fazer sucesso), onde comparava o uso do
burquini ao uso da suástica. Para este respeitado colunista o islamismo está de
tal maneira ligado ao terrorismo que usar publicamente os seus símbolos é o
mesmo que apoiar o Estado Islâmico. Como usar a suástica, mesmo que seja por
outras razões, é o mesmo que apoiar o nazismo. Eu percebo que para quem tem que
ocupar uma coluna de um jornal sem ter a capacidade para produzir qualquer
pensamento inteligente, esta comparação tenha parecido muito boa. O problema é
que o Estado Islâmico tem símbolos próprios, nenhum dos quais é o burquini! A
comparação certa é da suástica com a bandeira do EI. Ou então comparar a
proibição do burquini a uma proibição da bandeira alemã por causa do nazismo.
Nenhuma das duas é abonatória à posição do escriba em questão.
Esta
proibição não só não terá qualquer efeito na luta contra o terrorismo, como se
arrisca a piorar a situação. Pensemos na mulher humilhada na praia à frente dos
seus filhos, com a policia a manda-la despir, enquanto pessoas na praia
berravam contra ela e a sua fé. Pensemos em todos os muçulmanos normais, que
nada têm contra o ocidente. Que vêm nas noticias que uma mulher da sua fé foi
humilhada por nenhuma outra razão do que de se vestir de acordo com aquilo em
que acredita. Obrigada a despir-se porque a sua roupa é contra o secularismo e os
costumes, como disse a polícia. Quantos desses é que terão passado a odiar a
França? Em quantos terá crescido o ódio à Europa? Quantos viram confirmado as
teorias dos radicais de que o Ocidente é contra o Islão? Esta medida só irá
aumentar o ódio e a incompreensão numa situação onde eles já são reis e
senhores.
Esta
decisão é cobarde e é tirânica.
É
cobarde porque a França faz-se forte com os fracos, mas depois é fraca com os
fortes. Por um lado persegue uma parte desprotegida da população, proibindo a
de expressar livremente a sua fé. Com que objectivo? Satisfazer a vontade da
populaça que ameaça votar na Frente Popular. De facto, esta proibição só serve
para propósitos eleitoralistas. Esta proibição utiliza as armas do clã Le Pen
(a demagogia, o alarmismo, o discurso nacionalista) não para combater ou
prevenir o terrorismo, mas sim para ganhos políticos.
Ao
mesmo tempo, o Estado Islâmico continua a ter um território, um exército,
continua a perseguir e a executar inocentes. Os seus apoiantes continuam a
pregar nas mesquitas em França. Os seus sites continuam a recrutar jovens na
Europa. Mas contra eles, contra os verdadeiros terroristas, a França nada faz a
não ser belos discursos. Forte contra os fracos, fraca contra os fortes.
É
tirânica, porque ataca um direito fundamental. O direito a expressar a sua Fé,
o direito a vestir-se de acordo com aquilo em que se acredita, são direitos
inerentes à dignidade humana não são concedidos pelo Estado, mas devem ser por
ele reconhecidos e defendidos.
Os
direitos fundamentais não são absolutos. Podem ser limitados quando estão em
causa outros direitos de igual ou superior valor. Mas não podem ser limitados ou
retirados só para não ofender a sensibilidade pública. Um Estado que viola os
direitos fundamentais dos cidadãos, que se acha dono desses direitos
fundamentais, que os deixa ao capricho de sensibilidades políticas, é um Estado
tirânico.
Por
isso a proibição do burquini não é um ataque apenas ao Islão. É um ataque ao
Estado de Direito democrático. Por isso deve-nos preocupar a todos. Porque se
concedemos aos Estado o poder para decidir hoje o que uma mulher islâmica pode
ou não usar, arriscamo-nos a que amanhã esse mesmo Estado decida o que cada um
de nós pode vestir, que ideias pode exprimir, que Fé pode professar.
Disse neste seu post o mesmo que eu disse por várias vezes em comentários no Facebook... Mas parece que a capacidade de raciocínio lógico tem vindo a desaparecer a uma velocidade inacreditável... Mas é particularmente triste que isto se esteja a passar em França, o mesmo país que fez uma revolução quando a restante Europa ainda não ousava sequer levantar a cabeça, e tenha como mote, desde aí, Liberté, Egalité, Fraternité - só que agora, assim em modo "Animal Farm" /os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais do que os outros/ ou, no caso, os homens são todos iguais, mas, desde que sejam franceses, católicos e intransigentes. ...............
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