in memoriam de meu irmão
A
adaptação do musical Os Miseráveis para
o cinema é dos filmes mais belos e comoventes que tenho visto nos últimos anos.
Embora não tenha ficado muito convencido da primeira vez que o vi, voltei a
vê-lo várias vezes, por um conjunto variado de razões, até acabar por ficar
fascinado. De cada vez que o vejo, ou oiço a banda sonora, acabo sempre por
ficar comovido com a sua beleza.
Para
mim todo o filme roda à volta de duas personagens. De um lado o inspector
Javert, o agente da justiça, do outro Jean Valjean, servo da misericórdia.
O
conflito entre os dois começa logo na primeira cena. Javert é guarda dos
prisioneiros que fazem trabalhos forçados em Toulon. Valjean é o prisioneiro
24601, que ao fim de 19 anos, cinco anos por roubar um pão para alimentar os
sobrinhos, os outros por tentar fugir, sai em liberdade condicional, com a obrigação
de se apresentar regularmente às autoridades até ao fim da vida.
Jean
Valjean sai de Toulon destruído, totalmente amargurado, furioso com todo o
mundo pela injustiça de que foi alvo. E a liberdade só o esmaga mais. Rejeitado em
todo o lado por ser um condenado, perseguido e acossado, acaba por se deitar
para dormir à porta de uma casa próxima de um cemitério.
É
então que o bispo da cidade o vê e o convida a entrar, para cear e dormir.
Durante a noite Valjean foge, levando consigo os talheres de prata do bispo. No
dia seguinte é apanhado pela guarda que o leva a casa do bispo.
E
então dá-se o momento que transforma a vida de Valjean. O bispo, em vez de o
acusar, repreende o antigo condenado por se ter esquecido de levar os castiçais
de prata, último bem precioso que possuía, e dispensa a guarda. Depois de a
guarda sair, o bispo diz a Valjean: Lembra-te
disto meu irmão, vê nisto um desígnio superior. Deves usar esta prata preciosa
para te tornares um homem honesto. Pelo testemunho dos mártires, pela Paixão e
pelo Sangue, Deus ergueu-te da escuridão: eu comprei a tua alma para Deus.
A
partir desse momento, Jean Valjean muda de nome, escapa à justiça e começa uma
nova vida, toda alicerçada neste encontro. Relembrar esta cena traz-me à mente
as palavras do Papa Francisco na audiência com Comunhão e Libertação: O lugar privilegiado do encontro é a carícia
da misericórdia de Jesus Cristo para com o meu pecado. E, por isso, algumas
vezes me ouvistes dizer que o lugar privilegiado do encontro com Jesus Cristo é
o meu pecado. É graças a este abraço de misericórdia que dá vontade de
responder e de mudar, e que pode surgir uma vida diferente. A moral cristã não
é o esforço titânico, voluntarista, de quem decide ser coerente e o consegue,
uma espécie de desafio solitário perante o mundo. Não. Esta não é a moral
cristã, é outra coisa. A moral cristã é resposta, é a resposta comovida frente
a uma misericórdia surpreendente, imprevisível, até mesmo “injusta” segundo os
critérios humanos, de Alguém que me conhece, conhece as minhas traições e me
quer bem ainda assim, me estima, me abraça, me chama de novo, espera em mim,
espera de mim. A moral cristã não é nunca cair, mas levantar-se sempre, graças
à sua mão que nos segura.
E
assim é com Jean Valjean: ferido, trai a única pessoa que lhe estende a mão.
Contudo, a misericórdia “injusta” daquele bispo leva-o à conversão. Todo o
resto da sua vida será dedicada à misericórdia.
Do
outro lado temos o inspector Javert. Para ele a justiça é tudo. Não existe
maior virtude do que ser justo. O seu ódio a Valjean, que o leva a persegui-lo,
ano após ano, advém do facto de este ter cometido o que para ele é o maior
crime: fugir à justiça.
E
este é o grande drama de Javert: ele é um homem bom, mas para quem nada existe para lá da justiça. Aliás, podemos entrever a bondade do polícia na cena em que
ele contempla os corpos dos revolucionários mortos e vê entre eles o pequeno
Gavroche, que antes o tinha denunciado à polícia e que quase levou à sua morte.
Nesse momento Javert tira uma medalha do seu peito e coloca-a no cadáver da
criança, injustamente morta.
O
que ele não é capaz de aceitar é a injustiça da misericórdia. Para ele é claro:
quem errou tem que pagar o seu preço. O perdão totalmente imerecido, como
aquele de que foi alvo Valjean, parece-lhe o cúmulo da iniquidade. É gozar da
justiça. Por isso quando o seu inimigo, que ele perseguiu toda a vida
implacavelmente, o tem preso e decide liberta-lo em vez de o matar, ele quase
enlouquece. E quando finalmente tem Valjean à sua disposição e em vez de o
prender o deixa fugir, enlouquece de vez e suicida-se.
E
aqui vemos a diferença entre a justiça e a misericórdia. A justiça é uma
virtude humana. É uma medida humana: cada um tem aquilo que merece. Mas a misericórdia
é uma virtude divina: perdoar sem qualquer medida, sem qualquer cálculo ou
conta. Por isso a justiça, para ser verdadeiramente justa, tem que ser
temperada pela misericórdia. Se assim não for acaba por se tornar medida última
de todas as coisas. Acaba por ser tornar iniqua e destrutiva.
A
justiça, em última instância, é afirmação do homem como senhor de si mesmo. Eu
fiz isto ou aquilo e agora pago. Mas a misericórdia é a medida de Deus. É o
coração que grita: se mataste, se
roubaste, essas coisas não aconteceram, só Ele é( in Miguel Mañara). Por
isso negar a misericórdia é negar Deus, é trocar a Paternidade Divina pela independência,
ou seja pelo nada e pelo desespero.
Por
isso Javert diz ao suicidar-se: as estrelas
são negras e frias, enquanto eu olho para o vazio de um mundo que eu não
consigo segurar. Eu irei escapar-me agora do mundo, do mundo de Jean Valjean.
Não há nenhum lugar para onde eu possa ir, não há nenhum caminho para seguir.
Ao
contrário, Valjean morre sossegado, no Mosteiro onde viveu com a sua filha adoptiva,
com palavras de beleza e alegria: Deus nas
alturas ouve a minha oração. Leva-me agora, para o Teu cuidado. Onde estiveres,
deixa-me estar. Leva-me agora, leva-me lá, traz-me para casa.
Existe
outra razão, para lá da belíssima história para que este filme me emocione
tanto. Não consigo ver este filme, ou sequer ouvir algumas das suas músicas,
sem me lembrar do meu irmão Luís, que o Senhor chamou a Si no ano passado.
As
razões para esta memória são várias. Para começar o DVD do filme que eu tenho
herdei-o do meu irmão. Para além disso, também ele gostava muito d’Os Miseráveis. De tal maneira que chegou
a encenar algumas cenas do filme num concurso de talentos do Colégio de São
Tomás.
Mas
a principal razão para me recordar do meu irmão é que também ele procurou
sempre a misericórdia. Lembro-me de tantas vezes que ele foi tratado de maneira
menos justa ou menos simpática e de que como ele, muitas vezes perante a minha
fúria, preferia quase sempre não ligar, passar por cima.
Lembro-me
também da sua constante disponibilidade para ajudar. Alguns destes seus gesto
foram públicos: os concertos de natal, os coros, os teatros, o trabalho com os
Cavaleiros de Comunhão e Libertação. Mas muitos mais foram os gestos privados.
Nunca se esquecia de ninguém. Depois da sua morte foram várias as pessoas,
especialmente pessoas que regra geral são esquecidas pelos outros, que me contaram
a companhia que o Luís lhe tinha feito. Testemunharam pequenos gestos: uma
mensagem que ele tinha mandado num momento de tristeza, a companhia ao almoço,
um presente que ele tinha dado.
A
verdade é que esta maneira de viver, entregue à misericórdia, não será
provavelmente a melhor para triunfar no mundo. Engolir as injustiças e dar tudo
sem nada esperar em troca não é propriamente a receita para uma vida sossegada.
Mas é a receita para uma vida feliz, como aquela que o meu irmão viveu.
Sobretudo, parece ser o caminho para chegar à Glória do Senhor.
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