Na morte de Mário Soares muitas coisas haveria a dizer. Antes de mais como é impressionante que diante da morte haja sempre a necessidade ou de "endeusar" ou de "demonizar". Não existe, aparentemente, a opção intermédia de olhar para aquele que morreu como aquilo que foi: um homem, com qualidade e defeitos, virtudes e pecados, pelos quais agora responde.
Outra
das coisas que me impressionou muitíssimo na morte do Dr. Soares foi voltar
perceber como, mesmo passado mais de quarente anos, não é possível falar com
tranquilidade e distanciamento sobre o 25 de Abril e os anos que se lhe
seguiram. Mais uma vez, ou se está de um lado ou do outro. Como se a história
não fosse complexa e não fosse possível ser da democracia mas contra o modo com
esta foi implementada. Ou a favor da descolonização, mas contra descolonização
como esta foi feita.
Também
me impressionou a memória curta de muitos dos notáveis que falaram e escreveram
sobre o antigo Presidente. Aparentemente a democracia em Portugal teve um único
pai! Mas a verdade é que, não desprezando o enorme contributo de Mário Soares,
que com coragem enfrentou várias vezes a esquerda radical, é preciso não
esquecer tantos outros que também lutaram, alguns ao lado dele, para que
Portugal fosse livre e democrático. Antes de mais é preciso não esquecer Sá
Carneiro e Adelino Amaro da Costa, dois dos mártires da democracia no nosso
país. Mas sobretudo todo o povo que com coragem lutou, sobretudo a norte do
Tejo, para que Portugal não fosse comunista. Esse povo não era de Mário Soares:
eram trabalhadores, pequenos proprietários, pequenos empresários, agricultores,
gente cristã que bem sabia que não queria o comunismo em Portugal. A todos
esses, e não apenas ao Dr. Soares, devemos a democracia.
Contudo,
aquilo que realmente me impressionou na morte do Dr. Mário Soares foi a
ausência do povo. O Estado, os senadores do regime, os políticos, os notáveis,
os escribas, os artistas, os desportistas, todo e qualquer um que se ache
importante neste país, estiveram presentes nas exéquias de Mário Soares. O
Governo declarou três dias de luto nacional, preparou um funeral de Estado com
pompa e circunstância. Veio a GNR a cavalo, a charrete, tirou-se o pó a algumas
bugigangas da monarquia para adornar o evento. Vieram as forças armadas, a força
área fez voar os seus jactos. E contudo o povo permaneceu serenamente ausente.
Apesar dos apelos do Governo, apesar das campanhas televisivas, apesar de todas
as explicações pormenorizadas sobre as cerimónias fúnebres, o seu horário e
trajecto, o povo não veio.
O
mesmo povo que em dia de semana recebeu em euforia os campões nacionais. O
mesmo povo que acorreu em massa a homenagear Eusébio. O povo que saiu à rua
para chorar Amália. O povo que enche o Rock in Rio e os concertos do Tony
Carreira. Esse mesmo povo foi trabalhar, ou ficou nas suas casas.
Sobre
este facto cada um é livre para fazer as teorias que quiser. Pode-se dizer que
era dia de semana, embora também a chegada dos campeões europeus tenha sido a
um dia de semana. Ou então que o povo não gosta de enterros, mas a verdade é
que os de Eusébio e Amália estiveram cheios. Ou mesmo que foi por questões
partidárias, mas é preciso lembrar que todos os partidos, uns mais convictos
que outros, homenagearam o Dr. Soares. Pode-se até dizer que o povo não gostava
do "Bochechas", embora fosse uma figura que sempre suscitou simpatia
junto do público.
Para
mim a razão pela qual o povo faltou ao luto decretado pelo Estado foi
precisamente por ter sido o Estado a decretar o luto. O problema não é o Dr.
Soares, mas o facto de o povo não ter interesse no que a elite diz. A ausência
do povo é, para mim, sinal do enorme divórcio que existe entre o poder e o
povo.
O
povo adere ao que é seu, ao que sente seu. Por isso vai à rua receber a
selecção, por isso vai à rua chorar Eusébio e Amália. Mas o Pai da Democracia,
desta democracia e desta política em que já não acredita, para isso não vai.
Mais depressa se teria enchido as ruas para chorar o "Bochechas", que
montava tartarugas, do que o herói desta República ao qual o povo não liga.
Infelizmente,
as nossa elites parecem querer à viva força ignorar este divórcio. Preferem não
reparar que o mesmo povo que há quarenta anos acompanhou Soares à Fonte
Luminosa, se recusou a acompanha-lo à sua última morada e só volta a Alameda
para receber a Selecção.
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