Quem hoje andasse pelas redes sociais pensaria que havia em
Portugal uma epidemia de mulheres de burca a assaltar bancos. Aparentemente,
mulheres muçulmanas de rosto coberto são um enorme risco para a segurança,
apesar de não haver qualquer dado que assim o indique.
A mim, por norma, incomoda-me que o Estado limite a liberdade pessoal,
incluindo a liberdade de cada um se vestir como bem lhe apetece. Claro que
percebo que todos os direitos têm os seus limites, e a liberdade de se vestir
pode ceder diante do direito à segurança. Mas, para que isso aconteça, é
preciso realmente estabelecer um grau sério de ameaça à segurança.
Há imensos comportamentos sociais que são potencialmente perigosos. E alguns
são, de facto, origem de vários actos de violência — basta pensar no álcool,
por exemplo, responsável por tantos actos de violência. Contudo, ninguém
defende que se proíba o álcool. Nem o automóvel, uma das principais causas de
morte em Portugal, nem as comidas gordurosas ou açucaradas. Então, por que
razão o potencial risco da burca é suficiente para a sua proibição?
Claro que a segurança é apenas uma das desculpas — e a mais
fácil de vender — para esta proibição. A outra é a defesa da dignidade das
mulheres. Ainda hoje Rui Rocha, no Parlamento, ao bom estilo de um Abranhos ou
de um Gouvarinho, explicou a missão civilizadora do Estado. A sagrada liberdade
dita que tudo o que Rui Rocha acha indigno da condição feminina deve ser
proibido.
Não falo, como é evidente, dos casos em que as mulheres são
obrigadas pelos homens a usar burca. Isso já era ilegal (e acho encantadora a
candura destas pessoas que não percebem que o homem que impede a mulher de sair
de casa de cara descoberta irá simplesmente passar a impedir que ela saia de
casa, agora que isso é proibido). Mas, para quem hoje aprovou esta lei, mesmo
que a mulher escolha livremente esconder a cara, isso significa uma submissão
inqualificável à religião, que um Estado civilizado não pode aceitar.
Pelos vistos, não viola a dignidade da mulher vender o seu
corpo na internet. O corpo da mulher ser tratado como um qualquer pedaço de
mercadoria é, para os nossos deputados, uma expressão da sua liberdade.
Insuportável mesmo é que queiram andar de cara tapada! Espero pelo dia em que
um grupo de homens, tão magnânimo como os que hoje defenderam a dignidade da
mulher submetida à religião, decrete o fim do uso do soutien ou a obrigação do
biquíni na praia — tudo, evidentemente, em nome da dignidade das mulheres!
Tudo isto seria cómico, se não fosse perigoso. Basta ler a
exposição de motivos do projecto de lei, ou ouvir o discurso de Rui Rocha hoje
no Parlamento, para perceber a ameaça que esta lei pode representar. Num tempo
em que o valor mais ameaçado no Ocidente é a Liberdade, acho sempre perigoso
que um Parlamento invoque o poder do Estado para restringir a Liberdade
Religiosa. “Libertar as mulheres da religião” é uma frase que devia ser bem
conhecida dos católicos portugueses — afinal, foi essa uma das justificações
dos liberais para acabar com as congregações, e dos republicanos para acabar
com a liberdade da Igreja.
Por fim, bem conheço o argumento da ameaça islâmica. E
reparem que não tenho dúvida sobre ela. Ainda André Ventura andava a fazer
teses sobre a ameaça que o securitarismo representava para a liberdade dos
islâmicos, já eu escrevia sobre o tema (foi, aliás, o tema do meu primeiro
artigo no meu primeiro blogue). O problema é que a maior ameaça do islamismo é
a ameaça que representa às liberdades pessoais, sobretudo à liberdade
religiosa. Imitar o pior do extremismo islâmico para o combater não me parece bom
exemplo. Sim, o extremismo islâmico é uma ameaça, mas o extremismo laicista
também o é, como o comprovam a República Espanhola, a URSS ou a Revolução
Francesa.
Por tudo isso, esta lei hoje aprovada na Assembleia da
República (e foi aprovada por toda a direita, pelo que a malta que gosta de
dizer que eu só embirro com o Chega pode ficar sossegada) é ridícula e
perigosa. Ridícula, porque trata um problema que não existe — ou seja, a
suposta ameaça da burca. Perigosa, porque concede ao Estado o direito de
decidir o que as mulheres podem ou não vestir, e decide como podem ou não as
pessoas praticar a sua religião.
Por fim, é uma lei cobarde: forte com os fracos e fraca com
os fortes — quem promove o extremismo islâmico. Cortar relações com o Catar ou a
Arábia Saudita, dois dos maiores patrocinadores do terrorismo islâmico, nem
pensar. Oprimir ainda mais mulheres oprimidas, não há problema. É uma lei que
serve para mostrar serviço, para fingir que alguma coisa está a ser feita, para
alimentar a populaça. Uma lei feita à medida, que irá afectar mulheres
especialmente fragilizadas, não libertará nenhuma, não trará mais segurança,
mas permitirá aos partidos de direita fingir que estão a fazer alguma coisa.
Sem comentários:
Enviar um comentário