Texto da minha intervenção no encontro com as Equipas de Jovens de Nossa Senhora sobre os cristãos no mundo. Aproveito para agradecer o convite.
Boa noite a todos. O meu nome é Zé Maria Seabra Duque, sou
casado e pai de três filhos. Esta informação, que parece apenas um cliché de
apresentação, é de facto o maior serviço que prestei a Portugal e à Europa até
agora. Num tempo onde estamos tão ocupados a discutir o futuro da Igreja na
Europa, esquecemo-nos tantas vezes que a maior ameaça que enfrentamos é os
cristãos não terem filhos.
Profissionalmente devo fazer uma pequena correcção ao meu
título: de facto não sou um ilustre advogado, como a minha colega oradora, sou
apenas um pobre e mísero jurista.
Dito isto, e ainda antes de abordar o tema que me foi
dado, gostaria ainda de dizer que é com muita alegria que neste preciso dia
venho a esta Igreja.
Digo neste dia, porque faz hoje precisamente um ano que a
eutanásia foi chumbada no Parlamento. Foi um belo dia, fruto do trabalho e do
empenho de muita gente, por todo o país, muitos deles católicos (a começar nos
bispos!).
E digo esta Igreja, porque esta é a Igreja da minha
infância e princípio de juventude. Aqui fiz a catequese, aqui fui escuteiro e
sobretudo aqui fui investido acólito. Os acólitos foram para mim uma grande
escola: aprendi a amar mais os sacramentos e a liturgia. Mas sobretudo aprendi
que não há maior glória do que servir a Deus. E que no serviço a Deus não há
nada que esteja abaixo da nossa condição: qualquer que seja a tarefa é sempre
um honra imerecida, nem que seja apenas segurar numa vela! Foi também nesta
Igreja que me crismei: aqui, diante do Senhor Dom Tomás, que Deus tem na Sua
Glória, proclamei que a Fé que recebi de meus pais tomava como coisa minha.
Por isso é sempre com comoção que aqui volto.
Sobre o tema vou dividir a minha intervenção em duas
partes:
I.
As obras sem fé
II.
A fé e as obras.
I. As obras sem fé.
A primeira coisa que vos queria dizer é que a Europa é uma
invenção do cristianismo.
A Europa não é um continente geográfico, de facto faz
parte da eurásia. A fronteira dos Urais, ou do Bósforo, é cultural e
civilizacional, não cientifica.
O que separa a Ásia e a Europa é o cristianismo.
O mundo grego e romano, que são duas das grandes
influências da Europa, eram centradas no mediterrâneo. O leste e norte da
Europa não estavam nesse mundo, ao contrário do próximo oriente ou do norte de
África.
A Europa como a conhecemos hoje, do cabo de São Vicente
aos Urais, do Mar do Norte ao Mediterrâneo a cultura que têm em comum é o
cristianismo.
A Europa nasce da expansão do cristianismo na Idade Média.
É o tempo das catedrais, das cidades, da universidade, das
feiras. É o tempo de Bernardo de Claraval, Francisco de Assis e Tomás de
Aquino. É o tempo de Dante e de Giotto. É o tempo da razão, que, certa do
desígnio de Deus sobre o mundo, procura incessantemente compreendê-lo.
A Idade Média é uma sociedade profundamente cristã. O
poder da Igreja não era temporal (embora em alguns casos também o fosse) mas
era um poder espiritual. E a Igreja lutou sempre pela sua independência do
poder (e lutou literalmente, travou guerras pela sua independência do Imperador
e dos reis). As obras da Idade Média não são fruto do poder, mas
verdadeiramente da fé.
A Idade Moderna (fim do séc. XVI) assiste porém ao fim
desta ordem. O reforço do poder real exigiu também um domínio do poder temporal
sobre a Igreja, um garante da unidade nacional. A Fé passou a ser uma forma de
afirmação política. Isso iria verificar-se com a reforma protestante, com todas
as guerras que se lhe seguiram, até se chegar a formular que “em cada reino a
religião do seu rei”.
Esta mudança de uma cultura cristã para um poder cristão,
do cristianismo como acontecimento para o cristianismo como ideologia política,
terá consequências dramáticas. Uma Igreja cada vez menos preocupada com a fé e
mais preocupada com o poder. É o gérmen de uma mentalidade na qual a fé é
reduzida a uma piedade, útil para o domínio mas sem relação com a realidade.
Ao mesmo tempo há uma cultura que começa a nascer, onde a
razão se separa da fé. Uma razão que pretende ser o único critério para o
conhecimento.
Esta mentalidade irá resultar no Iluminismo, um pensamento
que rejeita qualquer relação da razão com a Fé. Isto tem um efeito dramático: é
que se trata de uma razão amputada e diminuída. Porque se a razão elimina a Fé,
elimina uma parte da realidade.
Por isso, quando chegamos à Revolução Francesa, que marca
a entrada na chamada Idade Contemporânea, temos estas duas circunstâncias:
- Uma cultura onde a razão está amputada da fé;
- Uma organização social baseada nos valores cristãos como
factor de regulação social, mas sem fé.
Evidentemente, nada disto é linear: acabei de resumir 1500
anos de história em três penadas. A Idade Média teve a sua quota parte de
misérias e a Idade Moderna teve a sua quota parte de glória. O Concílio de
Trento, o principio dos Jesuítas, muitos santos e santas. Contudo resumindo e
simplificando, o resultado é este: as obras cristãs sem a fé.
A Revolução Francesa é fruto desta nova mentalidade, da
razão que se considera o único critério para explicar a realidade.
Por isso, quando estala, revolta-se contra trono e o altar.
Contra aquilo que considera impedir a liberdade do povo. Evidentemente esta
mentalidade ideológica, fruto de um desejo justo de liberdade e de igualdade,
resulta numa tirania trágica, com milhões de mortos (no Terror, nas guerras
revolucionárias, na Vendeia, nas Guerras Napoleónicas).
A revolução acabará derrotada. Primeiro quando Napoleão
assume o poder Imperial, mas sobretudo com a restauração de Luís XVIII. Contudo,
se a revolução acaba derrotada enquanto projecto político, a sua mentalidade
triunfa por toda a Europa.
Começa a triunfar esta cultura de uma razão todo-poderosa
contra a superstição. E a verdade é a que resposta da Igreja foi, em grande
parte, procurar manter as estruturas de poder, e não renovar a fé. Em Portugal,
a Igreja foi reduzida a pouco mais de que um departamento do Estado, com os
padre a serem nomeados pelo governo como qualquer outro funcionário público.
Lembro que no séc. XIX boa parte dos bispos portugueses eram maçons!
É da Revolução Francesa que nascem as ideologias que hão
de gerar a cultura moderna: o marxismo, que é a negação de Deus e do individuo
em detrimento do Povo, o liberalismo, que é a negação do dignidade humana em
detrimento do lucro e o nacionalismo, que é a negação da dignidade humana em
favor da Nação.
Os últimos 200 anos têm sido marcados pelo recuo da
cultura cristã. Até chegarmos ao Maio de 68, onde os filhos da burguesia se
revoltam contra qualquer autoridade, contra qualquer moral. É o triunfo do
homem “livre”, que no seu desejo de liberdade quebra todas as barreiras: com
Deus, com a natureza, com a realidade.
A mentalidade actual é do homem que se basta a si próprio,
que se define a si próprio. Por isso lhe é insuportável a Igreja. É-lhe
insuportável que haja no mundo quem lhe lembre que não se basta a si mesmo. Que
é criatura dependente do seu criador. Esta ideia é absolutamente insuportável à
mentalidade moderna.
Mas a resposta não pode ser simplesmente a defesa dos
valores cristãos. Não é seguramente a imposição ideológica de uma sociedade
cristã de bons costumes. Porque essa sociedade, porque esses valores, sem a Fé,
são verdadeiros e justos, mas não têm raízes.
Olhemos para Notre Dame como exemplo. Veio o fogo e
consumiu parte da catedral. Mas o que foi realmente consumido? Os acrescentos
feitos no tempo após a revolução, quando Notre Dame era um símbolo nacional e
histórico. O que ficou de pé? As fundações de pedra, construídas pela fé do
povo de Paris.
As obras sem Fé são secas. Caem perante a primeira
ideologia que faz sobressaltar o coração. Se dizes a alguém “dois homens casarem
é pecado” e outro diz “o amor não olha a géneros”, tu tens razão, tu dizes a
coisa justa, mas o outro soa melhor, é mais atractivo!
II. A Fé e as obras.
Na sua primeira enciclica, Deus é amor, dizia Bento XVI: Ao
início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte
e, desta forma, o rumo decisivo.
A Fé é o encontro com Cristo, hoje como há dois mil anos.
Pensemos em João e André, na margem do lago, a ouvir João
Baptista. Ao fundo passa um homem. João Baptista para e diz "Eis o
Cordeiro de Deus". A multidão não liga, está habituado às excentricidades do
profeta. Mas João e André vão atrás dele. A um certo ponto o homem vira-se e
pergunta "Que quereis?". Eles respondem "Mestre onde
moras?", "Vinde e vede".
João narra este encontro décadas depois do acontecimento.
E contudo aquele momento continua a ser o momento decisivo da sua longa vida.
A Fé é este encontro com Jesus. Presente hoje na Igreja. O
encontro com uma humanidade extraordinária, uma humanidade diferente, uma
humanidade mais plena, mais autêntica. Um encontro que, como dizia Bento XVI,
não tira nada, mas dá tudo.
Um encontro com a Presença que corresponde plenamente ao
desejo de beleza, de justiça, de felicidade do nosso coração. O convite hoje, tal
como há dois mil anos, é o mesmo: vinde e vede. Vinde e verificai.
Onde encontramos hoje a Presença de Cristo? Naqueles que o
seguem. A promessa de Cristo, onde dois ou três estiverem eu estarei no meio
deles, não é vã. Está viva na Igreja, hoje.
Diante deste encontro, diante desta presença, só há duas
possibilidades: sim ou não. Se for sim, então é impossível que o encontro com
Cristo não mude a nossa vida. Se encontramos aquele que é a Verdadeira Beleza,
então queremos levar essa Beleza ao Mundo. Se encontramos aquele que é
Verdadeira Justiça, então queremos levar essa justiça ao mundo. Se encontramos
aquele que é a Verdadeira Caridade, então queremos levar essa caridade ao
mundo.
As obras são o fruto natural da Fé. São o fruto natural do
encontro com Cristo.
A Fé é o critério com que olhamos o mundo, com que
ajuizamos a realidade.
Perguntam se o mundo precisa dos cristãos? Mais do que
nunca, porque mais do que nunca precisa de Cristo. Porque vivemos num tempo
onde a humanidade está de tal modo amesquinhada que reduziu o seu desejo à
procura de sensações. Foge de qualquer incómodo, tenta preencher o vazio com
todo o lixo que encontra. Por isso Cristo, o único capaz de responder
verdadeiramente ao coração do homem, é urgente.
Por isso é urgente que os cristãos se empenhem no mundo.
Que estejam na sociedade, na economia, na educação, na política. Não com um
plano ideológico ou doutrinário, mas com o desejo de testemunharem aquilo que
vivem.
Só isto permite estar de maneira verdadeiramente livre e
orignal na política.
Eu há uns anos decidi empenhar-me na política. Quando
tomei essa decisão fui falar com o Padre João Seabra, meu tio e director
espiritual. Ele disse-me várias coisas, mas o mais importante foi isto: nunca
te esqueças que és cidadão do céu e concidadão dos santos.
Isto foi essencial para me fazer perceber que a minha
missão na política não é o triunfo da ordem cristã sobre a barbárie actual, mas
sim testemunhar Cristo.
E isto faz-se, não com um discurso, não com reduzir a
participação política aos temas "católicos", mas estando seriamente
empenhado na política, com seriedade, fazendo política para o que ela realmente
serve: não um projecto de poder, mas servir o bem comum. Um gestor católico o
que faz? Gere. E um professor católico? Ensina. Então o que faz um político
católico? Política. A diferença não é de discurso, mas de posição diante da
tarefa que lhe é confiada.
Dou-vos um exemplo prático. Na semana passada deu muito
que falar o ministro do interior italiano, que apareceu de terço na mão a
consagrar-se ao Imaculado Coração de Maria, no mesmo comício em que declarava
que nem mais um migrante entraria em Itália. Eu não vou aqui discutir política
migratória seguramente, mas pode alguém para defender o Cristianismo desprezar
aqueles que estão em perigo? Que cristianismo é este que não se sobressalta
diante do grito do pobre, do oprimido? Mais uma vez digo, não quero discutir as
migrações, é um problema complexo, com respostas complexas, do qual Itália tem
sido vítima. Mas a questão é: pode alguém seguir a Cristo e ao mesmo tempo desprezar
o próximo? Salvini evidentemente defende muitas coisas boas. E é bom que ele
queira defender o cristianismo. Mas a
verdade é que o cristianismo também pode ser reduzido a um projecto de poder
igual a qualquer outro, tão tirânico como qualquer outro.
O desafio é por isso estar na política (como na educação,
ou na economia, ou na saúde) não para afirmar uma doutrina, mas para
testemunhar um facto. Por isso lutamos contra o aborto, a eutanásia ou a ideologia
de género: não para contrapôr um sistema melhor, mas porque o encontro com
Cristo dá-nos a certeza de que toda a vida é amada e desejada por Deus.
O grande desafio do nosso tempo é conseguir comunicar este
facto ao mundo. A um mundo que fala uma linguagem diferente, que é fruto de uma
mentalidade diferente. O desafio dos cristãos na vida pública hoje é conseguir
comunicar a experiência de Cristo.
E isto só é possível de uma maneira, se nos deixarmos de
tal modo modificar por Cristo que ao olhar para nós o outro veja uma humanidade
diferente, uma humanidade mais plena, uma humanidade que vale a pena conhecer.
Muito bom Zé!
ResponderEliminarGosto especialmente desta parte
"Mas a resposta não pode ser simplesmente a defesa dos valores cristãos. Não é seguramente a imposição ideológica de uma sociedade cristã de bons costumes." porque de facto a Liberdade é o nosso maior bem, e Deus preferiu fazer-nos livres do que obrigar nos a amá-Lo... Que grande amor tem à Liberdade. É fácil esquecer isso.
Bjs