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segunda-feira, 3 de junho de 2019

As obras sem fé, a Fé e as obras - Encontro com as Equipas de Jovens de Nossa Senhora

Texto da minha intervenção no encontro com as Equipas de Jovens de Nossa Senhora sobre os cristãos no mundo. Aproveito para agradecer o convite.




Boa noite a todos. O meu nome é Zé Maria Seabra Duque, sou casado e pai de três filhos. Esta informação, que parece apenas um cliché de apresentação, é de facto o maior serviço que prestei a Portugal e à Europa até agora. Num tempo onde estamos tão ocupados a discutir o futuro da Igreja na Europa, esquecemo-nos tantas vezes que a maior ameaça que enfrentamos é os cristãos não terem filhos.
Profissionalmente devo fazer uma pequena correcção ao meu título: de facto não sou um ilustre advogado, como a minha colega oradora, sou apenas um pobre e mísero jurista.
Dito isto, e ainda antes de abordar o tema que me foi dado, gostaria ainda de dizer que é com muita alegria que neste preciso dia venho a esta Igreja.
Digo neste dia, porque faz hoje precisamente um ano que a eutanásia foi chumbada no Parlamento. Foi um belo dia, fruto do trabalho e do empenho de muita gente, por todo o país, muitos deles católicos (a começar nos bispos!).
E digo esta Igreja, porque esta é a Igreja da minha infância e princípio de juventude. Aqui fiz a catequese, aqui fui escuteiro e sobretudo aqui fui investido acólito. Os acólitos foram para mim uma grande escola: aprendi a amar mais os sacramentos e a liturgia. Mas sobretudo aprendi que não há maior glória do que servir a Deus. E que no serviço a Deus não há nada que esteja abaixo da nossa condição: qualquer que seja a tarefa é sempre um honra imerecida, nem que seja apenas segurar numa vela! Foi também nesta Igreja que me crismei: aqui, diante do Senhor Dom Tomás, que Deus tem na Sua Glória, proclamei que a Fé que recebi de meus pais tomava como coisa minha.
Por isso é sempre com comoção que aqui volto.

Sobre o tema vou dividir a minha intervenção em duas partes:
I.              As obras sem fé
II.            A fé e as obras.

I. As obras sem fé.
A primeira coisa que vos queria dizer é que a Europa é uma invenção do cristianismo.
A Europa não é um continente geográfico, de facto faz parte da eurásia. A fronteira dos Urais, ou do Bósforo, é cultural e civilizacional, não cientifica.
O que separa a Ásia e a Europa é o cristianismo.
O mundo grego e romano, que são duas das grandes influências da Europa, eram centradas no mediterrâneo. O leste e norte da Europa não estavam nesse mundo, ao contrário do próximo oriente ou do norte de África.
A Europa como a conhecemos hoje, do cabo de São Vicente aos Urais, do Mar do Norte ao Mediterrâneo a cultura que têm em comum é o cristianismo.
A Europa nasce da expansão do cristianismo na Idade Média.
É o tempo das catedrais, das cidades, da universidade, das feiras. É o tempo de Bernardo de Claraval, Francisco de Assis e Tomás de Aquino. É o tempo de Dante e de Giotto. É o tempo da razão, que, certa do desígnio de Deus sobre o mundo, procura incessantemente compreendê-lo.
A Idade Média é uma sociedade profundamente cristã. O poder da Igreja não era temporal (embora em alguns casos também o fosse) mas era um poder espiritual. E a Igreja lutou sempre pela sua independência do poder (e lutou literalmente, travou guerras pela sua independência do Imperador e dos reis). As obras da Idade Média não são fruto do poder, mas verdadeiramente da fé.
A Idade Moderna (fim do séc. XVI) assiste porém ao fim desta ordem. O reforço do poder real exigiu também um domínio do poder temporal sobre a Igreja, um garante da unidade nacional. A Fé passou a ser uma forma de afirmação política. Isso iria verificar-se com a reforma protestante, com todas as guerras que se lhe seguiram, até se chegar a formular que “em cada reino a religião do seu rei”.
Esta mudança de uma cultura cristã para um poder cristão, do cristianismo como acontecimento para o cristianismo como ideologia política, terá consequências dramáticas. Uma Igreja cada vez menos preocupada com a fé e mais preocupada com o poder. É o gérmen de uma mentalidade na qual a fé é reduzida a uma piedade, útil para o domínio mas sem relação com a realidade.
Ao mesmo tempo há uma cultura que começa a nascer, onde a razão se separa da fé. Uma razão que pretende ser o único critério para o conhecimento.
Esta mentalidade irá resultar no Iluminismo, um pensamento que rejeita qualquer relação da razão com a Fé. Isto tem um efeito dramático: é que se trata de uma razão amputada e diminuída. Porque se a razão elimina a Fé, elimina uma parte da realidade.
Por isso, quando chegamos à Revolução Francesa, que marca a entrada na chamada Idade Contemporânea, temos estas duas circunstâncias:
- Uma cultura onde a razão está amputada da fé;
- Uma organização social baseada nos valores cristãos como factor de regulação social, mas sem fé.
Evidentemente, nada disto é linear: acabei de resumir 1500 anos de história em três penadas. A Idade Média teve a sua quota parte de misérias e a Idade Moderna teve a sua quota parte de glória. O Concílio de Trento, o principio dos Jesuítas, muitos santos e santas. Contudo resumindo e simplificando, o resultado é este: as obras cristãs sem a fé.
A Revolução Francesa é fruto desta nova mentalidade, da razão que se considera o único critério para explicar a realidade.
Por isso, quando estala, revolta-se contra trono e o altar. Contra aquilo que considera impedir a liberdade do povo. Evidentemente esta mentalidade ideológica, fruto de um desejo justo de liberdade e de igualdade, resulta numa tirania trágica, com milhões de mortos (no Terror, nas guerras revolucionárias, na Vendeia, nas Guerras Napoleónicas).
A revolução acabará derrotada. Primeiro quando Napoleão assume o poder Imperial, mas sobretudo com a restauração de Luís XVIII. Contudo, se a revolução acaba derrotada enquanto projecto político, a sua mentalidade triunfa por toda a Europa.
Começa a triunfar esta cultura de uma razão todo-poderosa contra a superstição. E a verdade é a que resposta da Igreja foi, em grande parte, procurar manter as estruturas de poder, e não renovar a fé. Em Portugal, a Igreja foi reduzida a pouco mais de que um departamento do Estado, com os padre a serem nomeados pelo governo como qualquer outro funcionário público. Lembro que no séc. XIX boa parte dos bispos portugueses eram maçons!
É da Revolução Francesa que nascem as ideologias que hão de gerar a cultura moderna: o marxismo, que é a negação de Deus e do individuo em detrimento do Povo, o liberalismo, que é a negação do dignidade humana em detrimento do lucro e o nacionalismo, que é a negação da dignidade humana em favor da Nação.
Os últimos 200 anos têm sido marcados pelo recuo da cultura cristã. Até chegarmos ao Maio de 68, onde os filhos da burguesia se revoltam contra qualquer autoridade, contra qualquer moral. É o triunfo do homem “livre”, que no seu desejo de liberdade quebra todas as barreiras: com Deus, com a natureza, com a realidade.
A mentalidade actual é do homem que se basta a si próprio, que se define a si próprio. Por isso lhe é insuportável a Igreja. É-lhe insuportável que haja no mundo quem lhe lembre que não se basta a si mesmo. Que é criatura dependente do seu criador. Esta ideia é absolutamente insuportável à mentalidade moderna.
Mas a resposta não pode ser simplesmente a defesa dos valores cristãos. Não é seguramente a imposição ideológica de uma sociedade cristã de bons costumes. Porque essa sociedade, porque esses valores, sem a Fé, são verdadeiros e justos, mas não têm raízes.
Olhemos para Notre Dame como exemplo. Veio o fogo e consumiu parte da catedral. Mas o que foi realmente consumido? Os acrescentos feitos no tempo após a revolução, quando Notre Dame era um símbolo nacional e histórico. O que ficou de pé? As fundações de pedra, construídas pela fé do povo de Paris.
As obras sem Fé são secas. Caem perante a primeira ideologia que faz sobressaltar o coração. Se dizes a alguém “dois homens casarem é pecado” e outro diz “o amor não olha a géneros”, tu tens razão, tu dizes a coisa justa, mas o outro soa melhor, é mais atractivo!

II. A Fé e as obras.
Na sua primeira enciclica, Deus é amor, dizia Bento XVI: Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.
A Fé é o encontro com Cristo, hoje como há dois mil anos.
Pensemos em João e André, na margem do lago, a ouvir João Baptista. Ao fundo passa um homem. João Baptista para e diz "Eis o Cordeiro de Deus". A multidão não liga, está habituado às excentricidades do profeta. Mas João e André vão atrás dele. A um certo ponto o homem vira-se e pergunta "Que quereis?". Eles respondem "Mestre onde moras?", "Vinde e vede".
João narra este encontro décadas depois do acontecimento. E contudo aquele momento continua a ser o momento decisivo da sua longa vida.
A Fé é este encontro com Jesus. Presente hoje na Igreja. O encontro com uma humanidade extraordinária, uma humanidade diferente, uma humanidade mais plena, mais autêntica. Um encontro que, como dizia Bento XVI, não tira nada, mas dá tudo.
Um encontro com a Presença que corresponde plenamente ao desejo de beleza, de justiça, de felicidade do nosso coração. O convite hoje, tal como há dois mil anos, é o mesmo: vinde e vede. Vinde e verificai.
Onde encontramos hoje a Presença de Cristo? Naqueles que o seguem. A promessa de Cristo, onde dois ou três estiverem eu estarei no meio deles, não é vã. Está viva na Igreja, hoje.
Diante deste encontro, diante desta presença, só há duas possibilidades: sim ou não. Se for sim, então é impossível que o encontro com Cristo não mude a nossa vida. Se encontramos aquele que é a Verdadeira Beleza, então queremos levar essa Beleza ao Mundo. Se encontramos aquele que é Verdadeira Justiça, então queremos levar essa justiça ao mundo. Se encontramos aquele que é a Verdadeira Caridade, então queremos levar essa caridade ao mundo.
As obras são o fruto natural da Fé. São o fruto natural do encontro com Cristo.
A Fé é o critério com que olhamos o mundo, com que ajuizamos a realidade.
Perguntam se o mundo precisa dos cristãos? Mais do que nunca, porque mais do que nunca precisa de Cristo. Porque vivemos num tempo onde a humanidade está de tal modo amesquinhada que reduziu o seu desejo à procura de sensações. Foge de qualquer incómodo, tenta preencher o vazio com todo o lixo que encontra. Por isso Cristo, o único capaz de responder verdadeiramente ao coração do homem, é urgente.
Por isso é urgente que os cristãos se empenhem no mundo. Que estejam na sociedade, na economia, na educação, na política. Não com um plano ideológico ou doutrinário, mas com o desejo de testemunharem aquilo que vivem.
Só isto permite estar de maneira verdadeiramente livre e orignal na política.
Eu há uns anos decidi empenhar-me na política. Quando tomei essa decisão fui falar com o Padre João Seabra, meu tio e director espiritual. Ele disse-me várias coisas, mas o mais importante foi isto: nunca te esqueças que és cidadão do céu e concidadão dos santos.
Isto foi essencial para me fazer perceber que a minha missão na política não é o triunfo da ordem cristã sobre a barbárie actual, mas sim testemunhar Cristo.
E isto faz-se, não com um discurso, não com reduzir a participação política aos temas "católicos", mas estando seriamente empenhado na política, com seriedade, fazendo política para o que ela realmente serve: não um projecto de poder, mas servir o bem comum. Um gestor católico o que faz? Gere. E um professor católico? Ensina. Então o que faz um político católico? Política. A diferença não é de discurso, mas de posição diante da tarefa que lhe é confiada.
Dou-vos um exemplo prático. Na semana passada deu muito que falar o ministro do interior italiano, que apareceu de terço na mão a consagrar-se ao Imaculado Coração de Maria, no mesmo comício em que declarava que nem mais um migrante entraria em Itália. Eu não vou aqui discutir política migratória seguramente, mas pode alguém para defender o Cristianismo desprezar aqueles que estão em perigo? Que cristianismo é este que não se sobressalta diante do grito do pobre, do oprimido? Mais uma vez digo, não quero discutir as migrações, é um problema complexo, com respostas complexas, do qual Itália tem sido vítima. Mas a questão é: pode alguém seguir a Cristo e ao mesmo tempo desprezar o próximo? Salvini evidentemente defende muitas coisas boas. E é bom que ele queira  defender o cristianismo. Mas a verdade é que o cristianismo também pode ser reduzido a um projecto de poder igual a qualquer outro, tão tirânico como qualquer outro.
O desafio é por isso estar na política (como na educação, ou na economia, ou na saúde) não para afirmar uma doutrina, mas para testemunhar um facto. Por isso lutamos contra o aborto, a eutanásia ou a ideologia de género: não para contrapôr um sistema melhor, mas porque o encontro com Cristo dá-nos a certeza de que toda a vida é amada e desejada por Deus.
O grande desafio do nosso tempo é conseguir comunicar este facto ao mundo. A um mundo que fala uma linguagem diferente, que é fruto de uma mentalidade diferente. O desafio dos cristãos na vida pública hoje é conseguir comunicar a experiência de Cristo.

E isto só é possível de uma maneira, se nos deixarmos de tal modo modificar por Cristo que ao olhar para nós o outro veja uma humanidade diferente, uma humanidade mais plena, uma humanidade que vale a pena conhecer.

1 comentário:

  1. Muito bom Zé!
    Gosto especialmente desta parte
    "Mas a resposta não pode ser simplesmente a defesa dos valores cristãos. Não é seguramente a imposição ideológica de uma sociedade cristã de bons costumes." porque de facto a Liberdade é o nosso maior bem, e Deus preferiu fazer-nos livres do que obrigar nos a amá-Lo... Que grande amor tem à Liberdade. É fácil esquecer isso.
    Bjs

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