Recebi de Deus a graça, totalmente imerecida, de ser sobrinho e discípulo do Padre João Seabra. Mais do que isso, o Bom Deus, compadecido da minha fragilidade, concedeu-me a bênção de, durante anos, o poder acompanhar de perto.
Escrever sobre alguém que se ama é sempre difícil. Mas escrever sobre um santo inspira temor. A verdade é que tudo o que possa escrever ficará sempre aquém daquilo que foi o Padre João. Aquém da sua inteligência, da sua coragem, mas sobretudo, da sua fé e caridade.
Arrisco mesmo assim a fazê-lo. Antes de mais por gratidão. Não uma gratidão abstrata pelo dom que foi para a Igreja e para o mundo, mas a gratidão muito concreta de quem foi resgatado da sua miséria vezes sem conta, pelo amor do Padre João.
E, depois, porque aprendi com ele a não me levar a sério. O Padre João viveu sempre com a consciência clara da dependência de Cristo. Ele entregou-se totalmente a Jesus, para que Cristo fizesse com ele o que bem entendesse. Por isso nunca se escandalizou com o seu próprio limite, porque se sabia totalmente dependente de Jesus: a ele só lhe cabia dizer que sim, o resultado era de Deus.
O Padre João foi um homem cheio de talentos: uma inteligência profunda, uma capacidade única de compreender a realidade e de a explicar, uma oratória brilhante, um sentido de humor veloz e mordaz, um pragmatismo que permitia ultrapassar quase todos os obstáculos, entre tantos outros. Mas a verdade é que existem outros homens com muitos talentos. A singularidade do Padre João nasce da sua decisão de submeter todos os seus talentos a Deus. Para ele, ser padre significava entregar toda a sua vida, incluindo as qualidades que o fariam um principie no mundo, à salvação das almas.
As obras do Padre João, desde a capelania da Universidade Católica até ao Colégio de São Tomás, não foram criadas como um fim em si mesmo, mas como instrumentos para levar Cristo aos homens.
Por isso, ele era a imagem viva do Bom Pastor, que larga cem ovelhas para resgatar a que se perdeu. Quantas vezes atrasou o início de missa com centenas de pessoas, para confessar o último que chegou atrasado.
A sua fé era tão profunda, tão carnal, tão visceral, que se transformou em urgência de anunciar o que tinha encontrado. Por isso, para o Padre João cada encontro era ocasião de anunciar Jesus vivo, aqui e agora. Fosse aos estudantes da Católica, aos paroquianos da Madragoa, ao taxista que o transportava, ao empregado do café, a cada aluno dos seus colégios, interessava-se pelo destino de cada um daqueles com quem se cruzava. Durante toda a minha vida ouvi testemunhos de pessoas para quem o amor com que foi tratado pelo Padre João foi definidor para a sua vida.
Foi esta total confiança com que se entregou a Deus que lhe permitiu continuar a viver com a mesma alegria e intensidade quando o Seu Senhor decidiu, de forma misteriosa e incompreensível para muito de nós, retirar-lhe tantos dos dons que lhe havia concedido. Quando a voz que tinha comovido tantas igrejas e feito tremer tantos salões começou a falhar, começou a falar suavemente. E quando as dificuldades aumentaram, passou a falar menos. O que não deixou de fazer foi de se entregar continuamente para a salvação de cada pessoa com quem se cruzou. Não apenas os de sempre, mas até à última pessoa que conheceu, como a enfermeira a quem deu a bênção no dia em que morreu.
Os anos da doença do Padre João foram dolorosos, mas foram uma enorme graça. Porque podemos testemunhar a profundidade da sua entrega a Jesus. E aquele homem, cuja figura e a voz durante anos dominaram todos os locais por onde passou, não fugiu quando a Cruz se tornou mais pesada. Pelo contrário, continuou a percorrer publicamente o caminho do Calvário, à vista de todos, para a salvação de todos. Se durante anos olhávamos para o Padre João e víamos Jesus a ensinar aos doutores, nestes últimos anos vimos Jesus na Cruz. E aí residia toda a sua glória: “Senhor se for da Tua vontade, afasta de mim este cálice, mas que não se faça a minha, mas a Tua vontade”.
Dia 3 de Junho o Padre João foi para a casa do Pai. A dor da sua morte é imensa. Conforta-me a certeza da fé, na qual ele me educou. Estou certo que agora junto de Deus será ainda mais pai do povo que gerou. A mim sobra-me o desejo profundo de ser fiel à maior graça que recebi: seguir a Cristo que o Padre João me testemunhou, até ao dia em que o volte a encontrar no Céu.
Zé, obrigada por este teu texto. Comovente, claro, transbordante de amor, de gratidão na Fé em Cristo Jesus.
ResponderEliminarE aqui continuamos, juntos, a caminhar e a tentar merecer o tanto que recebemos.
Beijinho