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sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Eutanásia o grande jogo dos contrários



Lembro-me de em miúdo ter aprendido um jogo onde alguém cantava “quando eu digo sim, quando eu digo sim, vocês respondem não e quando não, e quando não, vocês respondem sim” e depois ia inventado frases com palavras soltas a que todos tinhamos que responder cantando a mesma frase mas com os opostos.

 

Lembrei-me deste jogo quando vi a notícia de que o Parlamento ia debater a Iniciativa Popular de Referendo sobre a eutanásia no dia 23 de Outubro. Como ainda Junho a deputada Isabel Moreira disse que não havia qualquer urgência em legislar a eutanásia e em quatro meses, como uma pandemia e um Orçamento de Estado pelo meio, conseguiu produzir um texto de substituição para ser votado no plenário e ainda despachar uma Iniciativa Popular que reuniu mais de 95 mil assinaturas, só posso presumir que também ela é fã do jogo dos opostos. Que quando diz que não há pressa, o que realmente quer dizer é que vai fazer deste tema a única prioridade do seu mandato.

 

E esta atracção pelo jogo dos oposto explicaria muito sobre todo o processo legislativo da eutanásia. Explicava por exemplo porque razão os defensores da morte a pedido ao mesmo tempo que dizem que é urgente debater o tema, recusam-se a pô-lo nos seus programas eleitorais, recusam-se a debatê-lo durante a campanha e agora irão recusar o referendo.

 

Explica também porque razão é que dizem que não se pode sobrepor os dogmas à razão, mas depois insistem numa medida que é rejeitada pela Ordem dos Médicos, pela Ordem dos Enfermeiros e pelo Conselho Nacional de Ética para as ciências da vida, deixando claro que esta lei não encontra qualquer justificação que não seja a crença dos seus proponentes.

 

Também deve ser por terem boas recordações deste jogo infantil que insistem em dizer que ouviram os especialistas, quando quase todos os especialistas ouvidos pelo Parlamento sobre o tema nos últimos anos se mostraram desfavoráveis a ela.

 

O jogo dos opostos também permitiria perceber a afirmação de que a objecção de consciência dos médicos está completamente salvaguardada, mas depois obrigar os médicos a justificar por escrito a sua decisão, com a decisão a ter que ser comunicada à Ordem. Suponho que o objectivo seja manter uma lista com os objectores de consciência...

 

De facto, só o gosto pelo jogo dos contrários pode explicar que continuem a afirmar que a eutanásia é apenas para casos muitos excepcionais e que a lei é muito restritiva e depois apresentem um projecto de lei onde cabe tudo . De facto, como o critério é ter uma lesão definitiva ou doença incurável e fatal, no projecto produzido por Isabel Moreira cabe desde uma cancro em último estágio até à diabetes. Só é preciso que os médicos considerem que existe sofrimento extremo, uma expressão completamente vaga, que inevitavelmente varia de pessoa para pessoa. Tudo isto sem ser obrigatório um psiquiatra que garante que o pedido é realmente livre e esclarecido (suponho que para os proponentes a especialização médico é um mero pormenor, e por isso ter um ortopedista ou um neurologista a avaliar o estado psiquiátrico do doente é perfeitamente normal!).

 

Fica também explicado porque razão os defensores da morte a pedido continuam a dizer que isto é uma questão de liberdade individual e depois deem o poder de decisão aos médicos. De facto é o doente que pede para morrer, mas caberá aos médicos avaliar o seu sofrimento e decidir se pode ou não ser morto. A lei, tal como está prevista, irá permitir que para o mesmo caso uns médicos permitam e outros não. Esta proposta de facto não aumenta em nada a liberdade individual, a pessoa pode pedir para morrer como já podia antes. A única diferença é que agora o médico pode decidir se mata o doente ou não!

 

Mas nada disto nos devia espantar, porque de facto toda a proposta da eutanásia tem por base o que parece ser um enorme jogo dos contrários: diante de uma pessoa em tal sofrimento que pede para morrer os defensores da legalização do homicídio a pedido da vítima afirmam que é tortura cuidar daquela pessoa e chamam misericórdia ao acto de matar aquele ser humano. Tentam explicar que é indigno a pessoa morrer na sua cama rodeada pelos que amam, mas chamam morte digna à injecção letal administrada numa sala de hospital.

 

E assim estamos, diante de um proposta de alteração legal gravissima que parece um enorme jogo dos contrários: não há pressa mas é feita a correr, queremos debate mas não debatemos, não pode haver dogmas mas não ouvimos a ciência, ouvimos os especialistas mas ignorámo-los, a objecção de consciência está protegida mas tem que ser justificada e registada, é para casos excepcionais mas cabe lá tudo, aumenta a liberdade pessoal mas que decide são os médicos, é o respeito pela dignidade humana mas o Estado mata doentes! Sobra-nos a esperança de que o jogo dos opostos seja jogado até ao fim e que quando dizem que vão votar a favor da legalização da eutanásia, de facto estejam a dizer que vão votar contra!

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