Todos as mensagens anteriores a 7 de Janeiro de 2015 foram originalmente publicadas em www.samuraisdecristo.blogspot.com

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Dos castelos na areia e das marés


 

Chegámos à praia e a miúda, do alto dos seus quatro anos, declara que vai fazer um castelo. Indiferente à maré que vai subindo, pega na pá e no balde e lá vai tentando, com sucesso relativo. Por fim, lá me deixa ajudar, e lá sai um castelo. Mas agora, como é evidente, falta protegê-lo. Escava-se o fosso, um dos manos faz o muro e o pai dedica-se à tarefa impossível de tentar deter a maré.

De pá em punho, escavo trincheiras, levanto muros, faço canais, poços, tudo o que me lembro para deter o avanço inexorável da maré. A pequena cidade, com um castelo e um muro, conta já com duas trincheiras e vários bastiões, como qualquer cidade que se prepara para receber o invasor.

A luta é desigual, mas o muro e o castelo, assim como as torres exteriores, lá se vão aguentando, comigo a escavar de cada vez que o mar galga as trincheiras, para grande felicidade e orgulho dos meus filhos. Mas eu bem sei que nada mais há a fazer pela salvação da cidade, do que esperar que a maré pare de subir.

Claro que, inevitavelmente, nos cansámos da brincadeira, e o apelo das bolas de Berlim fala mais alto. Da minha cadeira, observo a maré a invadir, ligeiramente atrasada pelo que sobra das defesas arduamente construídas, aquela pequena cidade — um castelo e um muro — construída pelos miúdos. E tudo acaba com uma qualquer criança mimada, que, ao passar pelas ruínas da nossa orgulhosa civilização, destrói com gozo evidente aquilo que nós construímos, enquanto o pai lhe ralha de forma impotente.

Devo confessar que, enquanto cavava vezes sem conta nesse esforço inglório de tentar travar a maré, não pude deixar de pensar que havia algo de alegórico naquela pequena cidade, à mercê do mar, que, apesar de todos os meus esforços, só podia esperar a salvação com o mudar da maré.

Nós, cristãos, vivemos também hoje tempos assim, onde vamos fazendo o que é possível para salvar a cidade no alto da montanha, enquanto vemos uma maré inexorável a avançar. E também nós temos consciência de que os nossos esforços, por muito grandes que sejam, para pouco mais servem do que para atrasar a maré. Mas, embora saibamos que a salvação não depende de nós, temos a consolação de não depender do arbítrio da natureza, mas da Misericórdia d’Aquele que é Senhor do Tempo e da História. E, por isso, temos bastante mais esperança do que a que eu senti enquanto via o mar a avançar em direcção ao castelo de areia, enquanto saboreava a minha bola de Berlim, sentado numa velha cadeira de praia.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

A barbaridade tornou Israel no agressor



Que uma bomba caísse na Paróquia da Sagrada Família em Gaza era inevitável. Quando se faz chover bombas durante quase dois anos num território com o tamanho do Alentejo, era bastante expectável que uma lá fosse cair.

Mas a Igreja da Sagrada Família é apenas mais um dos alvos civis que Israel atingiu nestes quase dois anos de guerra. Mesmo descontando todo o exagero e mentiras do Hamas, a verdade é que o contínuo ataque a Gaza tem provocado milhares de vítimas inocentes. Pessoas pobres, desesperadas, reféns do Hamas, abandonadas pelos países árabes, bombardeadas por Israel.

Há muito tempo que qualquer proporcionalidade entre o horrendo ataque de 7 de Outubro e a resposta de Israel se perdeu. E não colhe o argumento de que o Hamas, podendo, faria pior. Porque o Hamas é um grupo terrorista e Israel é, supostamente, um Estado civilizado.

Não coloco em causa o direito de Israel a existir, nem o direito a defender-se. Não há qualquer dúvida de que o ataque de 7 de Outubro pode ser equiparado a um acto de guerra, pelo que era razoável uma resposta de Israel. Mas não existe um direito a ocupar território que não é seu, não há direito a terraplanar Gaza.

É evidente que o Hamas não tem qualquer problema em usar a população civil como escudo humano. Em usar caves de hospitais como bases, ou escolas como paióis. São um grupo terrorista. Cabe a Israel responder como um Estado que respeita o Direito Internacional. Não o faz. Responde como uma nação poderosa, capaz de punir todo um povo para impor a sua vontade.

O ataque à Paróquia da Sagrada Família, a única presença cristã em Gaza, que acolhe 600 pessoas, não é apenas um azar. É um símbolo da barbaridade da acção de Israel. Não alinho com a esquerda, que finge que Israel é uma potência imperialista e que, mais ou menos envergonhadamente, defende a sua destruição. Não acredito que haja um genocídio em Gaza. Não nego a selvajaria do 7 de Outubro, e não tenho dúvida de que o Hamas é um grupo terrorista que deve ser destruído.

Mas neste momento, o governo de Netanyahu tornou Israel numa potência militar agressora, que, para seguir a sua visão de um Grande Israel — do rio ao mar (a inversão do sonho esquerdista para a Palestina) —, não hesita em chacinar inocentes (o que é diferente de um genocídio). E, por isso, tem de ser travado.

 

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Imigrantes: criados à imagem e semelhança de deus


 

1 – Quando afirmamos que a Vida Humana é sempre digna, não falamos apenas dos seus extremos. Se, evidentemente, os mais frágeis e desprotegidos, os que ainda não nasceram, mereciam protecção especial (e hoje, na maior parte do mundo, não têm nenhuma), a preocupação com os nascituros não esgota o primado da dignidade humana.

Afirmar que a Vida Humana é sempre digna significa que todos os Seres Humanos são igualmente dignos. Isto não pode, como é evidente, deixar de incluir os migrantes. A dignidade humana não acaba nas costas africanas do Mediterrâneo.

Por isso, o cemitério em que o Mediterrâneo se tornou não pode deixar de nos fazer sofrer e envergonhar. Os campos para migrantes nas ilhas gregas, a miséria em que muitos dos que procuram uma vida melhor vivem na Europa, são uma chaga na nossa civilização. E quem quer defender os “valores” cristãos, e para isso fala destas pessoas como inimigos, estará a defender muita coisa, mas não defende seguramente a Fé no Cristo, o Deus que desceu das alturas para entregar o Paraíso a um bandido na Cruz.

2 – Isto significa então que devemos ter uma política de portas abertas, onde todos os imigrantes podem entrar, sem qualquer controlo? Não, não significa. E não significa, antes de mais, porque a política de portas abertas é um atentado à dignidade dos imigrantes.

A política de portas abertas significa apenas a impunidade das redes de tráfico, que exploram desavergonhadamente quem procura uma vida melhor. Significa aceitar pessoas que não temos condições dignas para acolher, com os resultados que hoje vemos em Portugal: a maioria da população sem-abrigo é imigrante, milhares são explorados em trabalhos mal pagos, não há forma de conseguirem seguir o seu processo de legalização, vivem amontoados em casas decrépitas.

Para além disso, é evidente que os governantes, não podendo deixar de olhar com benevolência para todos os que vivem em situações de maior fragilidade, têm um primeiro dever para com os habitantes dos seus países. E, olhando mais uma vez para Portugal, um número grande de imigrantes traz consequências demasiado pesadas para a população que os acolhe: pressão sobre a rede escolar, sobre o SNS, sobre o imobiliário. Portugal não tem condições para acolher mais de um milhão de imigrantes.

3 – E a solução? Não é fácil. Eu sei que hoje as pessoas odeiam a complexidade e querem respostas simples: portas abertas ou remigração! Mas o mundo raramente é preto e branco. Raramente há maus de um lado e bons do outro. E as soluções simples, embora deem bons vídeos no TikTok, raramente produzem soluções justas.
Não se trata de qualquer relativismo, simplesmente de reconhecer que existem vários problemas, e é preciso encontrar soluções justas e humanas para todos.

É preciso garantir que não continuam a morrer pessoas no Mediterrâneo, que não entram pessoas simplesmente para ir viver na rua ou amontoadas em casas. Mas também é preciso garantir que não entram pessoas com cadastro de crimes violentos, acabar com as redes de tráfico, e garantir o equilíbrio entre os direitos dos imigrantes — incluindo à sua cultura e religião — e o direito dos portugueses à segurança e à paz social.

4 – Nada disso se faz com histerismo, nem com ódios. Reconhecer que temos imigrantes a mais não é o mesmo que constantemente tratar os imigrantes como criminosos ou selvagens.

Sobretudo, mesmo quando são necessárias medidas mais duras para combater o excesso de imigração, não devemos nunca esquecer que cada pessoa foi criada à imagem e semelhança de Deus, e que o próprio Deus Se ofereceu em sacrifício por cada um de nós. Muda alguma coisa nas decisões que é preciso tomar? Talvez não mude muito, mas muda a forma como olhamos para os imigrantes, e faz-nos procurar soluções justas — e não apenas satisfazer as nossas necessidades.

 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

You’ll Never Walk Alone



Foi muito impressionante assistir, ao longo do dia, às reações à morte de Diogo Jota e de André Silva. Embora todos os dias morram milhares de pessoas, muitas em circunstâncias dramáticas, é evidente que a morte de um jovem que, de alguma forma, fazia parte da nossa vida nos toca.

Sobretudo quando pensamos nas circunstâncias em que aconteceu. No ano em que foi campeão pelo Liverpool, pouco tempo depois de ganhar a Liga das Nações, uma semana após casar com a namorada de toda a vida, com quem tinha três filhos pequenos. A verdade é que Diogo estava no auge da sua vida — um sucesso conquistado com o seu trabalho.

Ainda por cima, há jogadores de futebol com quem embirramos, porque são mimados ou arrogantes. Diogo Jota era o contrário, como os milhares de testemunhos públicos têm deixado claro: humilde, trabalhador, totalmente dedicado à família. E, para piorar, morre num acidente — não a fazer uma imprudência qualquer, mas a regressar a Inglaterra porque não podia andar de avião.

Tudo isto parece absurdo, tudo isto parece absolutamente injusto. Os pais que perderam os filhos, a mulher, viúva ao fim de uma semana, os filhos órfãos. E nenhum sentimentalismo, nenhuma frase bonita, nenhum “you’ll never walk alone” pode dar resposta a este drama. Penso que também por isso se gerou um sentimento tão comum de dor entre nós: porque fomos, de forma crua e dura, colocados diante da fragilidade da vida. Diante de um jovem bom, com sucesso, no auge da sua vida profissional e pessoal, que, de repente, morre num estúpido acidente de carro. Um acontecimento assim não pode deixar de nos interpelar: de que vale a vida?

E, diante disto, penso que só há duas respostas verdadeiramente humanas. Uma é o desespero: aceitar que a vida é injusta, que nada vale a pena, que tudo se finda num único momento trágico. A outra, que a mim parece mais humana, é o pedido, o desejo, a exigência de mais; a intuição de que a vida é mais do que isto. Diante da morte, ou o desespero, ou o grito da fé. O grito, nascido da dor, de que Deus se revele, se nos mostre, se faça próximo.

Cristo é o único que pode dar sentido a um acontecimento destes. Só Aquele que venceu a morte, só Aquele que traz em Si a promessa da Eternidade, pode dar sentido à nossa existência humana. Porque Ele é o Penhor da Eternidade.

Essa promessa, de uma morada preparada para nós, não retira a dor nem o drama. Mas introduz uma nova perspetiva, um horizonte de esperança. A morte não tem a última palavra.

Por isso, rezo pela alma destes dois jovens, que não conheci, mas que, de alguma forma, entraram nas nossas vidas. Rezo para que o Senhor os acolha. E rezo pela sua família, dramaticamente atingida, para que, na sua dor, encontrem a doçura de Jesus — o único que nos permite, nunca caminhar sozinhos.