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quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Porque o aborto é a principal preocupação - Resposta ao Padre João Manuel Silva, sj




Caro Padre João Manuel Silva Sj.,

Li o seu artigo “Defender a vida entre o princípio e o fim” no ponto SJ e tomo a liberdade de lhe responder publicamente.

Para começar deixe-me dizer-lhe que concordo com quase tudo o que escreve. Achei especialmente pertinente a sua observação «Quando não entendemos a defesa da vida em termos de cuidado concreto pelo outro, a começar pelo mais frágil, o aborto e a eutanásia correm o risco de se tornarem bandeiras ideológicas, critérios absolutos para aferir o nosso grau de “catolicidade”». Aqui descreve um dos maiores riscos que os movimentos pro-vida actuais correm: o de transformar a justíssima luta contra o aborto, a eutanásia e outras medidas de engenharia social numa mera trincheira política. Felizmente o trabalho social que a maior parte das associações pro-vida desenvolve no apoio às grávidas em dificuldade, às crianças abandonadas, às mães e crianças sem recursos, até às mulheres que abortaram, serve de tónico contra essa tentação. 

Contudo ela existe, e existe sobretudo quando estes temas saltam do problema social, para o problema político. E tenho alertado várias vezes que apoiar medidas contra o aborto de um político concreto não significa apoiar todas as suas políticas. Infelizmente o mundo é imperfeito, e por isso vemos políticos contra o aborto e que ao mesmo tempo desprezam a vida dos que já nasceram por serem de outra etnia ou de outra nacionalidade. E também porque o mundo é imperfeito, esses políticos às vezes são a opção menos má de entre as possíveis!

Dito isto, tenho um ponto de discórdia com o seu artigo. Se é verdade que toda a vida é igual em dignidade, e por isso ser pro-vida não pode ser defender apenas a vida dentro do ventre materno ou no seu final, não significa que “a ameaça do aborto” não seja a principal prioridade. Porque o ponto não é se uma vida vale menos ou mais, mas qual o grau de ameaça a que está exposta. A vida de uma criança que ainda não nasceu tem igual valor a da criança que neste momento atravessa o Mediterrâneo num barco de borracha, ou da família que caminha na agrura da fronteira entre o México e os Estado Unidos. O que é diferente é o grau de ameaça a que estão sujeitos.

Os migrantes, por muitos perigos que corram, têm protecção legal. Infelizmente são alvo de desprezo de muitos estados, mas não é legal matar um migrante. Um bebé por nascer em vários países do mundo não tem qualquer protecção jurídica. Em Portugal até às 10 semanas. Em vários estados dos EUA até ao momento do nascimento. Por isso é razoável que o problema do aborto seja considerado a ameaça principal.

Mas para além disso, a verdade é que o aborto gera uma mentalidade que torna possível as tais outras injustiças que aponta no seu artigo. Dizia Santa Teresa de Calcutá “o grande destruidor da paz hoje é o aborto”. E dizia isto porque considerava o aborto o maior acto de violência de todos: a morte de um inocente pela vontade de sua mãe. E este acto de violência, hoje de tal maneira banalizado que se tornou a maior causa de morte do mundo, cria uma mentalidade de desprezo pela vida humana que permite relativizar qualquer outra forma de violência sobre o Homem. Se é lícito matar uma criança que ainda nem sequer nasceu porque é inconveniente, então porque não é licito deixar morrer pessoas no Mediterrâneo que lá estão por sua vontade? Porque hei-de correr riscos e gastar meios para salvar famílias que querem entra ilegalmente no meu país? 

Considerar o aborto a maior ameaça a Dignidade Humana não significa um desprezo pelas outras ameaças, muito pelo contrário. Significa precisamente combater a primeira de todas as formas de discriminação, a primeira de todas as formas de violência, a primeira de todas as formas de exploração, de violação da natureza e de exclusão. 

Por fim, deixe-me apenas discordar de mais um ponto do seu artigo: quando diz que a grande mobilização em torno das causas públicas dos católicos tem sido apenas em torno do aborto e da eutanásia. Se é verdade que este dois temas geraram grandes movimentações cívicas (ainda há pouco mais de um mês éramos mais de onze mil na Caminhada pela Vida em cinco cidades do país), parece-me injusto menorizar o empenho dos católicos em tantas outras causas públicas. Diariamente são milhares os católicos empenhados, em instituições católicas e laicas, que percorrem as ruas do país em apoio aos sem-abrigo, que visitam doentes nos hospitais, que entregam refeições a quem tem fome, que ajudam grávidas e jovens mães, que recolhem alimentos para instituições, que ajudam na reconstrução de casas, ou que simplesmente dão o seu tempo para estar com quem precisa. Será sem dúvida um trabalho menos visível, mas essencial para tantos milhares de pessoas que dependem destas ajudas. Pensemos que ainda este fim-de-semana foi a recolha de alimentos do Banco Alimentar, que sendo laico, nunca o conseguiria fazer sem o empenho de milhares de católicos que ocuparam supermercados de norte a sul do país.

Despeço-me pedindo a sua bênção e a sua oração.

José Maria Seabra Duque

Coordenador-Geral da Caminhada pela Vida.

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