Todos as mensagens anteriores a 7 de Janeiro de 2015 foram originalmente publicadas em www.samuraisdecristo.blogspot.com

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Os Papas de Meirelles





Não vi, nem tenciono ver o filme “Os dois Papas”. Já sei que é um filme bem realizado, com fotografia óptima, com boas representações. Acredito que seja uma obra de arte. Porém não me suscita qualquer interesse.

A resignação de Bento XVI é um dos momentos mais extraordinários dos nossos dias. Não apenas pela sua novidade, mas pelo que representa neste tempo onde o sucesso é tudo, um Papa resignar no auge da sua popularidade. Relembro aos mais esquecidos, que gostam de reescrever a história, que quando resignou Bento XVI estava no momento áureo do seu pontificado. Tinha arrumado a casa na questão dos abusos sexuais, as suas visitas pastorais eram um sucesso cada vez maior, era uma voz cada vez mais respeitada no mundo da cultura e da política, a sua pequena reforma litúrgica tinha cada vez mais apoiantes, tinha estabelecido com sucesso diálogo com ortodoxos e com os anglicanos e era o ano das Jornadas Mundiais da Juventude no Brasil, que tudo apontava virem a ser apoteóticas. Foi neste contexto que Bento XVI resignou. 

Para além disso Bento XVI e Francisco são dois homens extraordinários, com vida preenchidas, com trabalhos notáveis. Bento XVI é comummente reconhecido como um dos maiores intelectuais do seu tempo. 

Um filme é sempre uma história que o realizador quer contar. E evidentemente que para o fazer, mesmo sobre factos reais, tem sempre que adaptar para que a Obra tenha interesse, senão seria um documentário. Mas há uma diferença entre contar a história do que realmente aconteceu e contar a história como se acha que aconteceu ou devia ter acontecido. É a diferença entre estar aberto à grandeza da realidade ou querer sermos nós a ditar a realidade. 

Infelizmente o realizador do filme não tem interesse em contar o que aconteceu, mas em contar a sua opinião. Por isso temos dois Papas que são do tamanho do realizador. O que resulta numa caricatura de Bento XVI e de Francisco. Segundo as críticas, lá estão todos os clichés que habitualmente se atribuem aos dois Papas. Não há qualquer abertura à realidade dos dois pontificado, apenas o preconceito de quem julga conhecer. 

Nada disto me choca ou escandaliza. Nem sequer tenho qualquer má vontade contra quem Fernando Meirelles. Acredito que fez o melhor que sabe sem qualquer má intenção. Mas se sabe muito de cinema, sabe pouco sobre Bento XVI e Francisco. 

Por isso, diante de tão grandes figuras, com tanto para ler sobre eles e para além disso com tantos outros filmes para ver, não tenciono perder o meu tempo a ver dois Papas do tamanho de Fernando Meirelles. Até podem ser interessantes, mas este é um dos casos onde a vida supera largamente a arte. 

sábado, 28 de dezembro de 2019

O ataque à Porta dos Fundos e a indignação selectiva.




Assisto com espanto às reacções de consternação ao ataque feito ao Porta dos Fundos. Tenho lido por aí comparações várias ao terrorismo islâmico, ao Charlie Hebdo, até cheguei a ler um texto onde se explicava que era um ataque a quem só queria unir todos através do humor.

É preciso ser claro: é evidente que o especial de Natal dos humoristas brasileiros não justifica o uso de violência. Mas também é preciso ter sentido das proporções e não confundir o arremesso de dois cocktails molotovs a um edifico vazio por um grupo integralista político, com o terrorismo islâmico, e ainda menos com o ataque feito ao Charlie Hebdo, onde os atacantes tinham o objectivo claro de matar.

Nem a Porta dos Fundos passou de repente a ser uma pobre vítima. Os humoristas brasileiros decidiram fazer um especial de Natal com o único objectivo de causar polémica, sabendo que assim teriam sucesso. E decidiram causar polémica escarnecendo da fé dos cristãos. O seu objectivo não foi fazer humor, foi mesmo ofender, certos de que as respostas a este especial, tantas vezes desproporcionadas, seriam suficientes para lhes garantir o sucesso.

E assim foi. Este filme não tem sucesso graças a qualquer mérito próprio, mas só pela polémica que gerou. Infelizmente desta vez a indignação foi longe de mais.

Mas assim como não tenho qualquer problema em condenar quem atacou de forma irresponsável a Porta dos Fundos, também não tenho qualquer problema em condenar quem usa o ódio para se promover.

É das coisas mais espantosas tomar consciência que no tempo em que Bernardo Silva é condenado por fazer uma graça com um amigo africano, em que carreiras são destruídas por graçolas machistas com vinte anos, num tempo onde a linguagem é controlada ao pormenor de modo a não ofender nenhuma minoria, não exista qualquer pudor em zombar com a fé de tantos milhões de pessoas, sobretudo quando centenas de milhares de cristãos são perseguidos, e alguns até mortos, por professarem a sua fé.

A Porta dos Fundos decidiu achincalhar da fé daqueles que são mortos na Nigéria, presos na China, silenciados no mundo Árabe. E não só não foi censurada pelos habituais inquisidores contemporâneos, como aqueles que legitimamente se revoltaram com o filme foram, esses sim, considerados como inimigos da liberdade.

É aliás extraordinário como um cocktail molotov contra um prédio vazio causa bastante mais comoção do que crianças mortas na Síria ou na Nigéria.

Eu não tenho qualquer problema em condenar o ataque à Porta dos Fundos. Mas não tenho paciência para a indignação selectiva, que censura graças com homossexuais, mas se ri com as ofensas aos cristãos, que se indigna com o ataque sem qualquer vítima no Brasil, mas que olha para o lado quando milhares de cristãos são mortos pelo mundo fora.

Espero que de futuro aqueles que se dizem cristãos saibam responder a este género de demonstrações de desprezo e ódio dando testemunho da caridade cristã. Mas também fico à espera que todos os indignados profissionais, que hoje tanto defendem a Porta dos Fundos, demonstrem a mesma indignação da próxima vez que um cristão for morto pela sua fé. E sobretudo, espero que os humoristas brasileiros, que aproveitaram este episódio para se vitimizar, abandonem o discurso de ódio e ataque a quem só quer viver a sua fé sem ser insultado.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O Deus menino em palhas deitado - Observador, 23/12/19

Dia 8 foi dia de cumprir mais uma vez a tradição. Juntamente com a minha mulher e os meus filhos (que são de ajuda relativa), montei o presépio. Ovelhas, pastores, reis magos e, evidentemente, a Sagrada Família. Um conjunto não completamente homogéneo de peças, de várias proveniências (muitas herdadas, umas compradas nos últimos anos), uma mistura de musgo seco e algum apanhado este ano, e ficou montado.

Confesso que ainda hoje me entusiasma e comove montar o presépio. Não pela sua beleza (que até tem alguma), nem pelo evidente entusiasmo das crianças. Aquilo que realmente me toca no presépio é aquilo que simboliza: um Deus que se faz bebé para vir ao encontro do Homem.

Vivemos um tempo onde é fácil sermos esmagados pelas circunstâncias. Em Portugal o clima político está cada vez mais crispado, ao mesmo tempo que o SNS vai desabando, os preços das casas não param de aumentar (como os preços em geral), as engenharias sociais vão-se multiplicando. O resto do mundo está completamente incerto: a ameaça da guerra comercial entre as duas maiores potências económicas mundiais, a América do Sul em convulsão, a União Europeia dividida e cada vez menos unida, guerra e perseguições religiosas em África e no Próximo Oriente.

E contudo, o presépio volta a lembrar-nos que neste “vale de lágrimas” Deus Se fez carne para que cada um o possa encontrar.

Evidentemente que este facto em nada muda a circunstância histórica. Não o muda hoje, como não o mudou há dois mil anos. Jesus nasceu e Herodes continuou a ser tetarca da Galileia, Quirino governador da Síria e César Augusto continuou a reinar sobre Roma. Cristo não veio para fazer uma revolução social, mas para que cada homem O pudesse encontrar.

E o encontro com Cristo muda o coração do homem, e é essa mudança que permite mudar a história. O cristianismo não é um plano de poder, ou uma organização social. O cristianismo é o povo que nasce deste encontro com Jesus. E foi esse povo que gerou uma cultura, que gerou uma sociedade, que gerou aquilo a que chamamos o Ocidente. Não é possível compreender os valores do Ocidente, a igual dignidade de todos os Homens, a preocupação com os mais fracos, a defesa da paz, sem reconhecer a sua raiz.

Evidentemente, a história do cristianismo tem a sua quota-parte de vergonhas e de misérias. Mas isso não choca um cristão: sabemos que a Igreja é santa mas constituída por pecadores. O espantoso do cristianismo é precisamente a redenção humana. Ao longo de dois mil anos muitos foram os que olharam para o cristianismo como uma possibilidade de poder e de domínio. Mas onde abundou o pecado, superabundou a Graça. E por isso ainda hoje é possível encontrar testemunhos de santidade, que não podem deixar de nos interpelar. Pensemos por exemplo na Síria, de onde fugiram todas as ONG’s e só ficou a Igreja para ajudar as vítimas da guerra.

É normal nesta altura do ano falarmos da magia do Natal. Num tempo de paz e concórdia. Mas nada disso é mágico, é apenas a consequência desta ternura de Deus para com o homem, de que o presépio é sinal: Deus fez-se carne e veio ao nosso encontro.

É esta a tremenda pretensão do cristianismo: não uma proposta filosófica ou um código moral, mas a presença do próprio Deus feito homem. É possível escarnecer desta pretensão, tentar ignorá-la, opor-se a ela ou até mesmo persegui-la (como ainda hoje acontece em tantos lugares do mundo). E contudo, passados dois mil anos, continua a haver um povo que, tal como os pastores e os reis magos, continua a adorar aquele Menino deitado numa manjedoura.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Trazer a democracia cristã para o século XXI - Jornal Económico, 13/12/19

O desastre do CDS nas eleições legislativas fez o partido entrar em convulsão. Mas depois de 6 de Outubro descobriu-se que afinal todos os militantes do CDS, dirigente incluído, afinal discordavam do caminho que o partido estava a seguir!

Ironias à parte, a verdade é que se têm multiplicado o número de personalidades que bradam por um CDS verdadeiramente democrata-cristão, que na sua boca significa mais de direita e mais conservador. Supostamente seria esse o segredo para conquistar os eleitores.

Tenho vários problemas com estas exigências. O primeiro dos quais é que são tão vazias como o famoso pragmatismo de Adolfo Mesquita Nunes que resultou no resultado que se conhece.
Vazias porque se baseiam na mesma ideia: aquilo que realmente importa é dizer o que o eleitorado quer ouvir. A anterior direcção afirmava que as pessoas queriam era ouvir falar dos problemas concretos. Os que agora a criticam acham que as pessoas querem é ouvir falar da lista de temas que, regra geral, alimenta as redes sociais.

Esta estratégia, de adaptar o discurso à contingência que supostamente garante o melhor resultado eleitoral, é a estratégia que destruiu o CDS. No fundo, é a estratégia de Paulo Portas, mas sem ele. Funcionou com Portas porque ele era um político de excelência. Mas o ‘portismo’ sem Portas não funciona, porque na ausência de um líder de excepção, não há uma ideia ou causa que levem as pessoas a apoiar ou a votar no CDS.

O segundo problema é que embora usem muito a expressão democracia cristã acabam a defender outra coisa: um partido conservador e verdadeiramente de direita, o quer que isso seja. A democracia cristã é uma doutrina política com princípios claros: dignidade humana, solidariedade social, subsidiariedade.

Claro que os conservadores de direita se revêem em muitos destes princípios. Mas não são confundíveis e, em alguns casos, nem sequer compatíveis. A democracia cristã não é conservadora, porque o seu ponto não é conservar uma tradição ou sistema, mas defender a dignidade objectiva de cada Homem. E está acima da divisão anacrónica de esquerda e direita, porque não está presa a definições ideológicas, mas procura soluções concretas que permitam organizar a sociedade para o seu fim último, o bem comum, independentemente das soluções preconizadas caberem nas definições de direita ou esquerda.

É preocupante que diante da actual crise a discussão no CDS seja sobre qual a máscara que convém usar para o partido recuperar nas sondagens. O que realmente importa discutir é se o CDS tem hoje algo a propor ao país.

Numa direita sobrepovoada que espaço sobra para o CDS? O espaço para o qual foi criado: a democracia cristã. Há 44 anos atrás, diante do avanço do socialismo, os fundadores do partido tiveram a coragem de propor outro sistema. Um sistema baseado na dignidade humana, com respeito pelas liberdades individuais. Uma sociedade baseada na família e na solidariedade entre os indivíduos. Um Estado construído de baixo para cima, descentralizado, com espaço para os corpos intermédios da sociedade. Um país com uma economia de mercado, mas com mecanismos de regulação que proteja os mais frágeis. O CDS não se limitou a opor-se ao socialismo, propôs uma verdadeira alternativa a este.

Acompanho por isso Filipe Lobo d’Ávila quando afirma que é preciso refundar o CDS. Mais do que conversas vazias sobre direita e conservadorismo, é preciso coragem para retomar o ímpeto inicial do CDS e trazê-lo para o século XXI. Para menos do que isto é tempo perdido.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Porque o aborto é a principal preocupação - Resposta ao Padre João Manuel Silva, sj




Caro Padre João Manuel Silva Sj.,

Li o seu artigo “Defender a vida entre o princípio e o fim” no ponto SJ e tomo a liberdade de lhe responder publicamente.

Para começar deixe-me dizer-lhe que concordo com quase tudo o que escreve. Achei especialmente pertinente a sua observação «Quando não entendemos a defesa da vida em termos de cuidado concreto pelo outro, a começar pelo mais frágil, o aborto e a eutanásia correm o risco de se tornarem bandeiras ideológicas, critérios absolutos para aferir o nosso grau de “catolicidade”». Aqui descreve um dos maiores riscos que os movimentos pro-vida actuais correm: o de transformar a justíssima luta contra o aborto, a eutanásia e outras medidas de engenharia social numa mera trincheira política. Felizmente o trabalho social que a maior parte das associações pro-vida desenvolve no apoio às grávidas em dificuldade, às crianças abandonadas, às mães e crianças sem recursos, até às mulheres que abortaram, serve de tónico contra essa tentação. 

Contudo ela existe, e existe sobretudo quando estes temas saltam do problema social, para o problema político. E tenho alertado várias vezes que apoiar medidas contra o aborto de um político concreto não significa apoiar todas as suas políticas. Infelizmente o mundo é imperfeito, e por isso vemos políticos contra o aborto e que ao mesmo tempo desprezam a vida dos que já nasceram por serem de outra etnia ou de outra nacionalidade. E também porque o mundo é imperfeito, esses políticos às vezes são a opção menos má de entre as possíveis!

Dito isto, tenho um ponto de discórdia com o seu artigo. Se é verdade que toda a vida é igual em dignidade, e por isso ser pro-vida não pode ser defender apenas a vida dentro do ventre materno ou no seu final, não significa que “a ameaça do aborto” não seja a principal prioridade. Porque o ponto não é se uma vida vale menos ou mais, mas qual o grau de ameaça a que está exposta. A vida de uma criança que ainda não nasceu tem igual valor a da criança que neste momento atravessa o Mediterrâneo num barco de borracha, ou da família que caminha na agrura da fronteira entre o México e os Estado Unidos. O que é diferente é o grau de ameaça a que estão sujeitos.

Os migrantes, por muitos perigos que corram, têm protecção legal. Infelizmente são alvo de desprezo de muitos estados, mas não é legal matar um migrante. Um bebé por nascer em vários países do mundo não tem qualquer protecção jurídica. Em Portugal até às 10 semanas. Em vários estados dos EUA até ao momento do nascimento. Por isso é razoável que o problema do aborto seja considerado a ameaça principal.

Mas para além disso, a verdade é que o aborto gera uma mentalidade que torna possível as tais outras injustiças que aponta no seu artigo. Dizia Santa Teresa de Calcutá “o grande destruidor da paz hoje é o aborto”. E dizia isto porque considerava o aborto o maior acto de violência de todos: a morte de um inocente pela vontade de sua mãe. E este acto de violência, hoje de tal maneira banalizado que se tornou a maior causa de morte do mundo, cria uma mentalidade de desprezo pela vida humana que permite relativizar qualquer outra forma de violência sobre o Homem. Se é lícito matar uma criança que ainda nem sequer nasceu porque é inconveniente, então porque não é licito deixar morrer pessoas no Mediterrâneo que lá estão por sua vontade? Porque hei-de correr riscos e gastar meios para salvar famílias que querem entra ilegalmente no meu país? 

Considerar o aborto a maior ameaça a Dignidade Humana não significa um desprezo pelas outras ameaças, muito pelo contrário. Significa precisamente combater a primeira de todas as formas de discriminação, a primeira de todas as formas de violência, a primeira de todas as formas de exploração, de violação da natureza e de exclusão. 

Por fim, deixe-me apenas discordar de mais um ponto do seu artigo: quando diz que a grande mobilização em torno das causas públicas dos católicos tem sido apenas em torno do aborto e da eutanásia. Se é verdade que este dois temas geraram grandes movimentações cívicas (ainda há pouco mais de um mês éramos mais de onze mil na Caminhada pela Vida em cinco cidades do país), parece-me injusto menorizar o empenho dos católicos em tantas outras causas públicas. Diariamente são milhares os católicos empenhados, em instituições católicas e laicas, que percorrem as ruas do país em apoio aos sem-abrigo, que visitam doentes nos hospitais, que entregam refeições a quem tem fome, que ajudam grávidas e jovens mães, que recolhem alimentos para instituições, que ajudam na reconstrução de casas, ou que simplesmente dão o seu tempo para estar com quem precisa. Será sem dúvida um trabalho menos visível, mas essencial para tantos milhares de pessoas que dependem destas ajudas. Pensemos que ainda este fim-de-semana foi a recolha de alimentos do Banco Alimentar, que sendo laico, nunca o conseguiria fazer sem o empenho de milhares de católicos que ocuparam supermercados de norte a sul do país.

Despeço-me pedindo a sua bênção e a sua oração.

José Maria Seabra Duque

Coordenador-Geral da Caminhada pela Vida.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

39 ano depois é preciso honrar a memória de Sá Carneiro e Amaro da Costa




Faz hoje 39 anos que o Primeiro-Ministro e o Ministro da Defesa de Portugal foram mortos num brutal atentado. Poucos minutos depois de descolarem a caminho de um comício no Porto o avião onde seguiram explodiu, matando todos os passageiros.

Camarate permanece como um dos maiores escândalos da nossa democracia e seguramente a maior vergonha da nossa justiça. Tudo foi feito para abafar o que era evidente: foi um atentado. Testemunhas mortas, provas roubadas, relatórios abafados, a verdade é que o poder político e o poder judicial não quiseram investigar o assassínio de um Primeiro-Ministro e de um Ministro. Isto em democracia.

Passados quase quarenta anos continuamos sem saber quem foram os assassinos, quem foram os seus mandantes, quem era o alvo ou qual o motivo deste crime. O pouco que realmente sabemos devemo-lo à coragem de alguns jornalistas, de alguns amigos e familiares das vítimas e dos poucos políticos que insistiram em sucessivas Comissões de Inquérito no Parlamento. Sobre o tema vale a pena ler o livro de Inês Serra Lopes, que corajosamente, numa altura em que ainda era perigoso investigar o assunto, publicou, onde demonstra com clareza que foi realmente um atentado.

O silêncio sobre Camarate é uma das chagas abertas da nossa democracia. E é uma das provas claras da sua fragilidade. Como ainda há pouco tempo relembrava Pedro Santana Lopes, num belíssimo artigo sobre o 25 de Novembro, a democracia em Portugal nasceu e manteve-se sobre tutela militar até à revisão Constitucional de 1982. Portugal não foi realmente uma democracia até essa data. Até 1982 o poder dependia, em última instância, dos militares de Abril, que condicionaram à sua vontade o legítimo exercício do poder democrático.

Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa eram duas das figuras mais importantes na luta por uma verdadeira democracia ocidental em Portugal, fora da tutela militar. Não sabemos, e dificilmente viremos a saber, se foi por isso que pagaram com a sua vida. Aquilo que sabemos, é que foi o regime semi-democrático saído do 25 de Novembro que impediu que lhes fosse feita justiça.

O mesmo regime que nada fez contra o Partido Comunista a 25 de Novembro depois de falhado o golpe de Estado. O mesmo regime que nunca teve coragem para reverter as nacionalizações criminosas, os saneamentos e a reforma agrária. O mesmo regime que “descolonizou” entregando à União Soviética o Ultramar. O mesmo regime que anos mais tarde havia de deixar impunes os terroristas da FP-25.

Aqueles que hoje se dizem herdeiros de Sá Carneiro e Amaro da Costa têm o dever de combater este regime. Não apenas discutir qual o seu lugar à mesa ou que migalhas do orçamento lhes toca, mas realmente combater este regime. Sá Carneiro e Amaro da Costa lutaram por uma verdadeira democracia, não por este regime dominado pelos partidos, pelas amizades maçónicas e pelos interesses da plutocracia.

Que Camarate não seja apenas uma efeméride que relembramos uma vez ao ano, mas seja um símbolo da coragem para lutar por um Portugal diferente.