Todos as mensagens anteriores a 7 de Janeiro de 2015 foram originalmente publicadas em www.samuraisdecristo.blogspot.com

segunda-feira, 16 de junho de 2025

A Lei da Separação, as mesquitas e a liberdade religiosa


 

Há 114 anos, Afonso Costa declarava que iria acabar com a Igreja Católica em Portugal em duas gerações (para tranquilizar os mais pessimistas, os meus filhos são a quinta geração de católicos de ambos os lados desde a publicação da Lei, pelo que Costa parece ter falhado). O instrumento para a supressão da Igreja em Portugal era a famosa Lei da Separação, que nada separava, mas antes subjugava a Igreja em Portugal ao poder do Estado.

A Lei da Separação declarou como bens nacionais todas as igrejas, regulou o culto, as fontes de rendimento do clero, o toque dos sinos, o horário da catequese. Sobretudo, proibiu as demonstrações públicas da religião e a construção de novas igrejas.

Mas, como diria o Engenheiro Guterres, esta situação não nasceu do vácuo. Se o Liberalismo declarara o Catolicismo a religião do Reino, também tratara de submeter totalmente a Igreja ao poder do Estado, tornando-a em pouco mais do que uma repartição estatal, com escassa ligação a Roma.

Quando chegou a República, a situação da Igreja era periclitante. Um clero impreparado, pouco piedoso, mais político que pastor. Por isso a reacção firme do clero português apanhou de surpresa Afonso Costa, que pouco respeito dispensava ao clero regalista. Mas foi a rejeição heroica dos bispos e dos padres às pensões e às cultuais previstas na lei, sacrificando assim os poucos bens e proveitos que a República lhes deixara, que realmente operou a separação entre a Igreja e o Estado.

O que a História nos ensina nos últimos 200 anos (e até mais, porque esta tentativa de submissão da Igreja começa com Pombal) é que a liberdade da Igreja só é possível quando esta não depende do poder. Por isso, a liberdade da Igreja está dependente do Estado reconhecer, como direito inalienável, a liberdade religiosa.

E a questão da liberdade religiosa é que não se pode dividir. Não posso reconhecer a minha liberdade de adorar a Deus, de professar publicamente a minha Fé, de a viver comunitariamente, e negar a dos outros. Porque, se assim for, se eu afirmar que o Estado tem o poder de decidir que fés são admitidas e que fés não são, então estou a afirmar que a liberdade da Igreja não é um direito em si mesmo, mas uma benesse do Estado. E a História ensina-nos que transformar o Catolicismo em religião do Estado pode ser bom para o Estado, mas acaba com a opressão da Igreja.

É por isso que defendo a liberdade dos muçulmanos em construir mesquitas e em rezar em público. E não vale a pena confundir as coisas: sim, há um problema com a imigração, sobretudo de países muçulmanos; sim, há um problema com o Islão quando este começa a ser maioritário, como se vê em vários países da Europa. Mas esse problema não se pode confundir com a liberdade religiosa.

Outra questão é se o Estado deve apoiar a construção de mesquitas. E aqui a resposta é simples: depende. Sim, o Estado deve criar condições para que todos possam exercer a sua fé em liberdade, e isso pode passar por dar algum tipo de apoio à construção de uma mesquita, como faz com as igrejas (cedência de um terreno ou de um imóvel). Não, o Estado não deve subsidiar o culto, nem favorecer as comunidades islâmicas de forma injustificada, como parece que Fernando Medina quis fazer com a nova mesquita da Mouraria.

Por fim, há uma preocupação legítima com a segurança. Mas, nesse caso, o que deve preocupar são as mesquitas clandestinas que por aí pululam, não aquelas que são construídas às claras, cujo acesso é público e que mantêm relação com a sociedade que as rodeia. Um ímã extremista não precisa de um edifício novo para espalhar o ódio — para isso, basta-lhe uma garagem esconsa. Investigue-se o que for preciso, mas isso não é argumento para suprimir a liberdade religiosa.

Nada disto se deve confundir com a liberdade dos islâmicos de viverem a sua Fé. Porque, no dia em que eu reconhecer ao Estado o poder de regular a fé alheia, estou a reconhecer que o exercício da minha Fé é uma benesse do Poder. E isso, como os valentes bispos de 1911, não podemos permitir.

 

terça-feira, 10 de junho de 2025

Dia de São Camões



Por que razão celebramos o Dia de Portugal no dia da morte de Camões? Não duvido da importância do poeta: a sua influência na língua, a sua importância para a forma como vemos a história do nosso país, sobretudo os Descobrimentos. Mas não deixa de ser curioso que, num país nascido da guerra e da resistência a Espanha, se escolha, em vez de São Mamede, Ourique, Aljubarrota, a morte de Camões.

A explicação podia ser a de uma valorização da cultura. A concepção de um país como mais do que um conjunto de pessoas, mas uma história e um desígnio conjunto, que o poeta canta n'Os Lusíadas como mais ninguém. A escolha de Camões podia significar uma exaltação da portugalidade, o homem que criou Portugal através do mito, ligando a história nacional, da Fundação aos Descobrimentos.

Infelizmente, a razão pela qual o Dia de Portugal se celebra na data da morte de Camões é bastante mais prosaica. Não celebramos Camões pelo seu génio, mas porque morreu em cima do dia de Santo António.

As festas de Camões foram começadas pelos republicanos, que na sua ânsia de laicizar as festas populares, começaram a festejar a morte de Camões, com direito a procissões e tudo, como concorrência ao Santo António. Daí a ser popularmente chamado São Camões.

Com a proclamação da República e o fim dos feriados religiosos, o 10 de Junho passou a feriado municipal, seguindo a estratégia republicana de substituir feriados religiosos por feriados civis. Mais tarde, ainda na República, seria alçado a feriado nacional, na tentativa de criar uma religião civil e patriótica que substituísse a fé popular.

No Estado Novo, Salazar, na sua estratégia de apaziguação, restaura com a Concordata de 1940 alguns dos feriados religiosos, mas mantém os feriados republicanos. Aliás, uma das características de Salazar era a capacidade de apaziguar as diversas fações, dando um pouco a cada um. Exalta a história cristã, mas mantém os festejos patrióticos, na ânsia de criar um espírito patriótico separado da devoção cristã. Assim, agrada a católicos, monárquicos e republicanos.

O 10 de Junho, como grande festa nacional, é uma invenção da República e do Estado Novo, mais tarde reciclada pela democracia. Pobre Camões, o grande poeta da nossa história, que se viu assim utilizado como instrumento contra essa própria história. Merecia melhor sorte.