sábado, 30 de maio de 2020

O populismo é um sintoma, temos que tratar é a doença, Observador, 30/05/20

Para a minha geração, nascida em democracia, para quem a queda U.R.S.S. é apenas uma vaga recordação da infância e a guerra na Jugoslávia um acontecimento confuso que preocupava os adultos, a democracia é um dado adquirido. Muitas vezes, demasiadas, esquecemo-nos que a democracia que conhecemos não só é recente como está longe de ser um sistema universal. De facto, só no meu tempo de vida passou a democracia a ser a regra na Europa, sendo ainda hoje desconhecida em boa parte do mundo.

E o facto de darmos a democracia por adquirida leva-nos muitas vezes a acreditar que ela é indestrutível, que é inexorável, que é inevitável. Temos a crença de que qualquer ameaça à democracia acabará, inevitavelmente, derrotada e condenada ao caixote de lixo da História. Infelizmente essa mesma História prova que esta crença não é justificada. Basta um rápido olhar para o tal caixote de lixo para lá vermos impérios, regimes e nações que se consideravam eternos e que hoje só vivem nos livros (e alguns nem isso).

Talvez por isso não demos a devida atenção à crise que a democracia atravessa no Ocidente em geral, e em Portugal em particular. Pode haver mais ou menos revolta com o regime, mas damos por adquirido que ele não cai.

A única coisa que parece realmente assustar é o chamado populismo. E assusta porque faz um discurso contra o sistema. Não se limita a denunciar os problemas, promove um novo sistema. E a simples ideia de que possa haver outro sistema, que não a democracia que conhecemos, assusta de tal maneira que chega a acontecer defender-se os males da democracia só para evitar esse papão. Basta lembrar como nas últimas eleições brasileiras vários comentadores defenderam o PT, usando como argumento que era preferível um corrupto a um populista.

O problema é que a verdadeira ameaça à democracia não é o populismo. O populismo é a reacção à crise que a nossa democracia atravessa. É a reacção à promiscuidade entre políticos, poder económico e jornalistas. É a reacção aos escândalos de corrupção e amiguismo que assombram a nossa classe política e que passam impunes. É a reacção aos partidos cada vez mais fechados sobre si mesmos, os seus esquemas de poder e os seus tachos. É a reacção a uma comunicação social pouco isenta, ao serviço do poder e de agendas ideológicas. É a reacção à economia de compadrio. É a reacção ao falhanço do Estado Social, com uma justiça lenta, um SNS a cair aos pedaços e uma Segurança Social afundada em burocracia. É a reacção a um sistema onde os políticos respondem ao directório do partido e não aos cidadãos.

É disto que o populismo se alimenta. Evidentemente que o faz muitas vezes de forma pouca honesta, empolando e descontextualizando factos para manipular a insatisfação popular. O populismo vive da revolta, e por isso tem que a alimentar.

Criar um cordão sanitário à volta dos populistas, desprezando os factos que o alimentam, catalogar de populista qualquer pessoa que alerte para a crise do regime, ridicularizar aqueles que defendem algumas das causas que os populistas tomaram de assalto, não só não resolve o problema do populismo, como só o alimenta.

Fingir que a corrupção não é um problema, ignorar os problemas de criminalidade em certos bairros, ridicularizar quem defende a Vida e a Família, insultar quem demonstra receios com a crise migratória, cerrar fileiras à volta dos aparelhos dos partidos tradicionais, mesmo quando há evidências claras de comportamento menos ético, é apenas lançar combustível para uma fogueira. Como os Estado Unidos e o Brasil demonstram claramente.

O populismo é um sintoma de um regime doente. É a febre de uma infecção. Podemos tomar paracetamol, e este até pode trazer algum alívio. Mas a doença não só não vai desaparecer, como vai provavelmente piorar, até a infecção estar tão espalhada que nenhum remédio a resolve.

Mais importante do que combater o populismo, é combater a doença que assola a nossa democracia. É combater a corrupção, aproximar os eleitos dos eleitores, é garantir uma imprensa isenta, uma justiça célere, um Estado Social que funcione, acabar com a economia de compadrio, a promiscuidade entre políticos, bancos e as grandes empresas. Ou seja, mais importante do que combater o populismo é fortalecer a democracia e garantir um sistema justo. Se formos capazes de o fazer, então o populismo irá desaparecer. Como a febre desaparece quando se acaba a infecção.

Ao contrário do que os populistas tentam vender, ainda existem muitos políticos honestos que trabalham pelo bem comum, muitos jornalistas isentos que vivem a missão de informar o público e muitos empresários que com o seu trabalho criam riqueza para o país. Esta é a sua hora. Hoje mais do que nunca é preciso apoiar e incentivar aqueles que servem realmente ares publica. Caso contrário só resta esperar até que a alternativa de voto seja nos “donos disto tudo” ou nos populistas. E aí será indiferente, porque estaremos só a assinar a certidão de óbito da democracia.


segunda-feira, 25 de maio de 2020

O jogo das presidenciais.




Não é possível qualquer análise séria das presidenciais sem partir de uma premissa: salvo qualquer desastre, Marcelo Rebelo de Sousa vai vencer as presidenciais. E em principio vai vencer por larga margem. A maior vitória que os seus adversários podem sonhar é forçar a 2ª volta. Mas mesmo isso, se vier a acontecer (o que parece muito improvável), irá dever-se a abundância de candidatos de protesto e não por uma qualquer hipótese real de o derrotar.

António Costa sabe bem disto. Não tem ninguém no PS que possa sequer fazer mossa ao actual Presidente da República. Não há hoje na área do Partido Socialista qualquer presidenciável que fosse ter resultado muito melhor que Maria de Belém. Ao mesmo tempo o Primeiro-Ministro também sabe que o Presidente da República não tem força para o enfrentar a ele. 

Dado que Rui Rio tem como único sonho o bloco central, a oposição ao Governo hoje está reduzido a CDS, IL e Chega. Por isso Marcelo Rebelo de Sousa pouca ou nada pode fazer contra o Governo: se o demitir ele ganha as eleições, se vetar ele ultrapassa o veto no parlamento. António Costa domina o regime e ao PR sobra-lhe pouco mais que cortar fita e tirar selfies.

Por isso para Costa as presidenciais só têm um objectivo: reforçar o seu próprio poder. O apoio a Marcelo Rebelo de Sousa é apenas uma armadilha: condiciona o PR, e obriga a direita a escolher entre perder as eleições ou apoiar o seu candidato. E assim transforma o que poderia ser visto como uma derrota, numa vitória certa, metendo o Presidente e a oposição na algibeira.

Para António Costa só há um espinho nesta eleição: Ana Gomes. É evidente que quem o vai atacar com força durante a campanha é André Ventura. Mas para António Costa isso é indiferente. Um bom resultado de André Ventura só lhe traz vantagens: fragiliza ainda mais a direita, e une a esquerda à sua volta. Quanto mais forte for Ventura, mais Costa se arroga em guardião do regime.

Já Ana Gomes é diferente. É tão populista como André Ventura (mas como é de esquerda ninguém pode dizer isso), mas é do seu partido. Ana Gomes pode fazer à esquerda o que André Ventura faz à direita. Embora com menos estrondo, uma vez que a esquerda está bastante mais forte. Por isso quem tem interesse na candidatura de Ana Gomes é a direita, especialmente a direita que não quer André Ventura, e a esquerda desalinhada com o PS.

Já Ventura e Ana Gomes só têm a ganhar com as suas candidaturas. Com o resultado já decidido, estas eleições serão ideais para candidaturas de protesto. Dos dois, Ventura é o que tem mais a ganhar e a perder. Ana Gomes pouco tem a perder e a ganhar. Pode ganhar mais palco e influência, mas não tem qualquer expectativa de poder subir muitos mais politicamente. Já Ventura tem aqui uma boa possibilidade ter um bom resultado nas urnas. As sondagens têm vindo a subir, mas a verdade é que André Ventura em urnas só vale 1%. As presidenciais poderão ser um bom momento para fazer subir esse resultado. Por outro lado, se lhe correr mal, e não conseguir um bom resultado, sendo que as eleições seguintes são as autárquicas que não costumam favorecer partidos novos por falta de estruturas locais, pode ser o esvaziar do balão.

Bloco e Partido Comunista farão o que fazem sempre. O Bloco irá candidatar Marisa Matias, a única candidata que têm capaz de fazer boa figura numa eleição unipessoal. O PC irá candidatar mais um homem do aparelho para marcar presença.

A grande interrogação é o que fará a direita democrática. Apoia Marcelo? Inventa um candidato? Não faz nada? 

O circo à volta de Adolfo Mesquita Nunes não é para ser levado a sério. Mesmo com todas as qualidades políticas que lhe são conhecidas, é evidente que uma candidatura sua seria um desastre. Não tem força para ser uma alternativa credível a Marcelo, é demasiado sério para ser um candidato de protesto. A candidatura de Adolfo Mesquita Nunes serviria apenas para demonstrar a separação que há entre o povo da direita e as suas elites que se entretêm no auto-elogio no twitter e a fazer zooms entre si. A proto-candidatura de AMN tem como único objectivo cavar mais divisões no CDS e sobretudo relançar o projecto de uma direita supra-partidária liderada por liberais e conservadores iluminados. É um prolongamento do Movimento 5.7, que por muito interesse intelectual que tenha, não tem qualquer expressão social.

Infelizmente estas presidenciais vão ser duras para a direita. Gostemos ou não, não se vislumbra qualquer candidato que consiga influenciar estas eleições. A direita arrisca-se, para não votar em Marcelo Rebelo de Sousa, a apoiar uma candidatura que apenas a fragilize mais. Há um país real para além das capelinhas dos intelectuais da direita, um país real que gosta de Marcelo Rebelo de Sousa e não conhece nenhuma das luminárias por quem a nossa direita tanto suspira. Aquilo que os lideres da nova direita têm que pensar é o que preferem: engolir o sapo e votar em Marcelo Rebelo de Sousa ou arriscar provar a sua insignificância.

No estado actual das coisas não há espaço para grandes manobras nas próximas presidenciais. A maior parte das peças já estão colocadas e não sobra muito espaço no tabuleiro para grandes movimentações. Quem quiser ir a jogo vai ter que ir com as peças que há. E às vezes o mais sábio é mesmo ficar a ver.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

São João Paulo II, Magno - 100 anos.





Assinala-se hoje 100 anos do nascimento de Karol Woytila, São João Paulo II. O Papa polaco é sem dúvida um dos maiores homens do século XX, e um dos grandes santos da Igreja.

Órfão de pai e mãe ainda jovem, resistiu ao regime nazi e depois ao comunismo. Extraordinário actor, apaixonado pela sua Polónia. Desde cedo no seu sacerdócio, e depois como arcebispo de Cracóvia, demonstrou uma especial inclinação para os jovens. Era também um desportista. Amava as montanhas e o sky.

Quando foi eleito Papa era uma figura imponente, com uma voz capaz de se impor ao mundo. Teve um longo pontificado (27 anos), marcado por um renascimento da Igreja e pela reaproximação dos jovens.

Havia tantas coisas para dizer sobre João Paulo II. As suas viagens por todo o mundo, a sua devoção a Nossa Senhora, a proximidade às pessoas, o seu olhar desconcertante!

Com ele a Igreja voltou a aprender o valor da pureza e da defesa da Vida. Reaprendeu a graça da confissão, já tão esquecida.

E depois temos também a sua intervenção pública. A sua oposição ao comunismo foi essencial no fim da URSS. Mas também é preciso lembrar como tantas vezes levantou a voz pela paz. Como se opôs claramente à primeira Guerra do Golfo. 

O pontificado de João Paulo II foi uma grande graça para a Igreja e para o mundo. Mas devo confessar que a memória que guardo de São João Paulo II não é do homem de palavras fortes e gestos gloriosos. Eu só assisti ao fim do seu pontificado. A minha recordação é do Papa doente, fragilizado. É de suster a respiração a cada gesto seu, rezando para que o Papa tivesse força para continuar.

Eu bem sei que quando falamos de João Paulo II preferimos sempre focar-nos na sua glória, e tratar a sua doença, e sobretudo, os últimos dias da sua vida, como um pormenor.

Mas devo dizer que foi precisamente o modo como viveu a sua doença que me fez amar João Paulo II de maneira profunda. Porque na sua doença brilhou com clareza toda a sua Fé e toda a sua entrega a Cristo.

Na sua última aparição pública, no Domingo de Páscoa de 2005, já nada havia do gigante que tinha tido o mundo a seus pés. Só estava ali um homem doente, acabado, que nem era capaz de falar. E contudo ofereceu-se até ao fim. Na sua última aparição já pouco havia de Karol Woytila, mas naquele homem que abençoava o seu povo estava Cristo. Naquele homem que abraçou a cruz até ao fim, naquele que não se poupou a nenhuma humilhação, ali estava a resposta à pergunta de Cristo a Pedro: “Senhor, tu que sabes tudo, bem sabes que te amo”. De Karol Woytila já não havia nada, já só lá estava Pedro. 

Nesta última aparição das suas enormíssimas capacidades só sobrava a Fé. E foi a Fé que o fez um homem extraordinário. Por isso ali estava o essencial. 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Alguns pontos sobre a morte de uma criança.




1. A morte violenta de uma criança às mãos do pai chocou o país. Uma onda de indignação varreu, justamente, a sociedade. Dificilmente alguém se pode deixar de revoltar com os factos que foram sendo conhecidos.

Diante de um crime destes é natural a reacção de transformar o criminoso num monstro. De facto os seus actos são tão tenebrosos que parecem não ser humanos. Mas esta reacção, justa e compreensível, significa apenas a desresponsabilização do criminoso.

Nós queremos que ele seja um monstro, para puder tranca-lo, deitar fora a chave e não pensar mais nele. Ou então, numa versão mais “humanista”, tranca-lo para que seja “curado”. E assim resolvemos o problema do mal: identificamos os monstros e removê-los da sociedade. E não, não estou a falar apenas dos que defendem a prisão perpétua. Falo também daqueles que rapidamente tentam reduzir qualquer crime monstruosos a problema psiquiátrico que pode ser “tratado”.

Mas não, não falamos de um monstro. Falamos de uma pessoa, tanto quanto sabemos absolutamente normal, que cometeu actos monstruosos. Não é uma pessoa aparte, mas um como nós. Um como nós que usou a sua liberdade para o mal. Por isso alias é que deve ser punido. Se de facto fosse um monstro estava apenas a fazer o que lhe é natural.

E isso é o que nos assusta. Perceber que a luta entre o bem e o mal não se trava em trincheiras, mas no coração de cada homem. Podemos, e devemos, como é evidente combater aqueles que cometem más acções. Mas só podemos lutar contras as consequências de uma luta que se trava, antes de mais, no coração de cada homem.

Por isso, a conversa dos “monstros” ou dos “psicopatas” serve para nos aliviar, mas não 
resolve o problema.

2. Este crime trouxe de volta o debate sobre a prisão perpétua. Temos assistido a dois tipos de argumentos: a) evitar este tipo de crimes; b) que é a única punição justa.

O primeiro argumento é razoável. Se de facto a prisão perpétua evitar a morte de uma criança, então parece-me totalmente razoável que seja aplicada. O problema é que não há nenhuma evidência que assim seja. Vários países no mundo têm prisão perpétua, assim como pena de morte. E não há nenhum dado que indique que este tipo de crimes, seja menor nesses países por causa disso. Um adulto capaz de matar uma criança, ainda mais, um pai capaz de fazer mal a um filho, infelizmente não se deixa deter pelo pensamento de que poderá apanhar uma pena mais severa.

Quanto a ser uma punição justa: não é. Não é porque é sempre pouco. Não há qualquer pena que seja justa por matar uma criança. Seja prisão perpétua, seja pena de morte, seja a tortura até à morte. Está sempre aquém do mal de matar uma criança.

O fim da pena não é apenas punir, nem apenas salvaguarda a paz pública (embora este dois fins não possam, nem devam ser ignorados) mas também a regeneração. Uma justiça que apenas procura punir, sem regenerar, é uma justiça contrária à dignidade humana. É uma justiça vingativa, que nega ao criminoso a sua humanidade. Dirão que foi o próprio que o fez, quando cometeu o crime. Mas a verdade é que a dignidade é inerente ao Homem, mesmo aqueles que praticam actos monstruosos. E mesmos esses têm direito a regenerar-se.
Por isso não acredito numa pena que apenas serve para vingar.

3. Como disse no ponto anterior, aumentar as penas de prisão para crimes dentro da família não resolve o problema. Quando chegamos à discussão da pena, quer dizer que o crime já aconteceu, o mal já está feito. Para proteger as crianças é preciso que o debate seja feito a jusante: como prevenir estes crimes.

Evidentemente que é preciso mais meios para a Segurança Social, para acompanhar as crianças em risco, para acompanhar as famílias. Mas há um problema estrutural na nossa sociedade relativamente à família que não se resolve com melhor “fiscalização” da mesma.
Há uma cultura reinante de egoísmo e de egocentrismo, que evidentemente é contrária à família. A ideia que cada um é mais “eu”, mais “livre” se viver sem qualquer laço que o prenda ou restrinja.

A família, por sua natureza é contrária a esta ideia. O casamento exige sacrifício, a paternidade restringe a nossa autonomia. O amor, especialmente na família, é a doação de si mesmo. Se eu amo o outro, então desejo o seu bem, e estou disposto a sacrificar o meu bem pelo seu. Se assim não for, então não é amor, mas a satisfação egoísta do meu desejo de afecto.

E nada disto nos faz menos “eu”. Porque se o meu destino é com a minha mulher, então o que eu faço para que o casamento funcione não me diminui, pelo contrário, completa-me. O mesmo com os filhos.

Infelizmente isto é cada vez mais estranho à sociedade. Cada vez mais a família é feita de direitos individuais (a minha felicidade, a minha liberdade, a minha realização) em choque. E por isso já não se valoriza o valor da família, como um bem em si mesmo.

Aliás, isto é cada vez mais visível na lei. Hoje o Direito da Família já não existe para proteger a família, mas para proteger os direitos individuais contra a família.

O divórcio express, as disputas de poder paternal que só pensam nos direitos dos adultos, a desvalorização do casamento. Tudo isto degrada o papel da família.

Por isso não podemos estranhar que cada vez mais haja violência nas famílias. Se o outro na família é um limite à minha liberdade e não um bem, se outro restringe a minha liberdade, a minha autonomia, então é natural que em vez do amor cresça o ódio.

Para combater a violência na família, mais do que agravar a penalização, é preciso começas a valorizar, social e juridicamente, a família. É preciso criar uma verdadeira cultura familiar. Se não continuaremos a lamentar o mal em vez de o prevenir.

4. Tem sido nojento assistir ao espectáculo de necrofilia à volta deste crime. É evidente que há órgãos de comunicação social piores que outros, mas poucos resistem a chafurdar em todos os aspectos deste crime. Os actos são descritos com pormenor, ouvem-se os especialistas, fazem-se debates, entrevista-se os familiares, os vizinhos, os populares. Assistimos em directo à profanação da memória desta criança. E não é em nome da informação, mas simplesmente em nome das audiências.

Mas o problema não está (apenas) nos jornalistas. Se eles o fazem é porque há um publico que consome. Um púbico que avidamente consome os pormenores macabros deste crime como se de uma série criminal se tratasse. Que debate o assunto com a mesma indignação com que debate a bola. Um público ávido de emoções, e que gosta da indignação que estes casos geram.

Não é por acaso que não referi o nome da pobre criança que foi morta. Nem foi por acaso que não coloco aqui a sua fotografia. Bem sei que isso me traria mais reacções e mais leitores. Mas recuso-me a aproveitar-me desta desgraça. A usar a vítima como objecto para cinco minuto de fama.

Que se escreva, que se debata, que se ajuíze, que se informe. Tudo isso é necessário e útil. Mas por favor, parem com o espectáculo e com o aproveitamento à volta deste crime. A família da vítima, mas sobretudo a própria vítima, tem o direito a não ser usados para alimentar audiência, egos e estados de espirito.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Defendo o Avante porque não sou comunista.





Tenho assistdo com alguma incredulidade à polémica sobre a Festa do Avante. Eu bem sei que nos últimos anos é trendy tratar a festa comunista como se mais um festival de música se tratasse, onde a única diferença era o stand da Vodafone ou da NOS ser substituído pelo do Partido Comunista da Coreia do Norte ou de Cuba. Frequentar o Avante era aliás prova de liberalidade e de vistas largas, típica da burguesia ocidental que sempre gostou de tratar os comunistas como uns caturros idealistas (ao contrário dos burgueses dos países comunistas, que regra geral não gostavam daquela caturrice comunista que consistia em prende-los, tortura-los ou matá-los).

Mas o PC nunca tratou o Avante como um mero festival. Sempre foi uma fonte de financiamento, uma prova de força e uma ocasião de marcar a reentré política. Simplesmente nunca se preocupou que isso fosse feito à custa de capitalistas tontos.

Por isso quando Jerónimo de Sousa diz que o Avante não é um festival de música tem toda a razão. É de facto uma acção política, onde o PC demonstra a sua força. E sendo uma acção política, está protegida pelo direito à liberdade politica garantida pela Constituição. O direito de reunião não depende da lei.

Logo, é evidente que o Partido Comunista não precisa de autorização para fazer a Festa do Avante. Não estamos em Estado de Emergência, a Constituição continua em vigor, não consigo por isso perceber com que autoridade o Governo pode ditar que acções políticas podem ou não realizar-se.

O ponto não é autorizar-se a Festa do Avante, mas em que termos ela se pode realizar-se. De facto o Governo pode ditar regras para a realização de acções políticas, incluindo regras sanitárias, depois cabe a quem promove acções politicas decidir se as realiza ou não. E até agora não ouvi ninguém do PC contestar isso. Aliás, o PC limitou-se a relembrar que o Avante não era um festival de música e ainda nem confirmou que se vai realizar.

Claro que grande parte da fúria com o Avante vem da proibição por parte do Governo de outra actividades. Mas era bom que se percebesse que o problema não é a festa do Avante, o problema é o Governo considerar que pode decidir sobre celebrações religiosas, o problema é ter polícias a questionar cidadãos na praia e na rua, o problema é achar-se que um partido político tem que pedir autorização para acções políticas. Isso é que devia realmente revoltar as pessoas.

Se a situação é de tal maneira grave que exige medidas extraordinárias então que se volte ao Estado de Emergência. Agora se não o é, então o Governo não pode evocar a Lei de Bases da Protecção Civil, para emitir decretos e despachos que violam a Constituição.

Eu defendo que o PC tem todo o direito de fazer a Festa do Avante, se assim o quiser, nas condições sanitárias que forem exigidas em Setembro. Não o faço por causa dos comunistas, nem sequer pela festa a que nunca fui e não tenciono ir. Faço-o porque acredito que num Estado de Direito nenhuma pandemia justifica que o Governo aja à margem da Lei e da Constituição. Faço-o porque acredito que a Democracia exige, especialmente em tempos de crise, o respeito pelos Direito Fundamentais que não estão à disposição do Governo, nem da maioria parlamentar. Defendo a Festa do Avante precisamente porque não sou comunista, porque acredito na liberdade individual e na liberdade política, acredito nas responsabilidade individual e política. Mas exijo também que a Constituição, com os seus Direitos Fundamentais, não se aplique apenas ao Partido Comunista, mas a todos os cidadão portugueses. 

domingo, 3 de maio de 2020

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus




1. A resposta de Jesus sobre a quem se devia pagar imposto, se ao Templo se a César, é provavelmente uma das suas frases mais conhecidas. Quando questionado Jesus respondeu: de quem é a face que aparece na moeda? Respondem-lhe que é de César. Então o Messias diz, dai pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Jesus estabelece um princípio claro até então desconhecido: o de que a religião era independente do poder. Cristo é o primeiro a separar a Igreja do Estado.

E essa luta será uma constante da história da Igreja. A historiografia moderna, profundamente anti-católica, faz questão de confundir a Igreja e o poder durante parte da história da Europa. Esta versão da história ignora por completo a luta da Igreja pela sua liberdade contra o Poder Temporal, que tentou utilizar a Igreja como sua extensão. Os momentos em que a Igreja e o Poder estiveram juntos, foram em regra por escolha do Poder, com a Igreja submetida.

Em Portugal foi a resistência dos bispos portugueses que conseguiu a separação entre a Igreja e o Estado, e assim garantir a liberdade da Igreja. A recusa dos bispos em aceitar a submissão à Lei da Separação (que não separava coisa nenhuma, antes regulava de maneira estrita a vida da Igreja) fez a verdadeira separação da Igreja do Estado. O preço pago foi alto (todos os bispos foram desterrados, perderam-se os Paços, Igrejas, seminários, etc.) mas foi assim que a Igreja em Portugal se libertou do jugo do Estado: desobedecendo à Lei, resistindo ao Governo.

A Igreja sempre reconheceu que cabe ao Poder legítimo governar a sociedade. E que os cristão tem obrigação de lhe obedecer: dai a César o que é de César. Mas também sempre foi clara que “a Deus o que é de Deus”: não cabe ao Estado governar a Igreja. A separação da Igreja e do Estado não significa apenas que a Igreja não se mete no governo, significa também que o Estado não se mete na Igreja.

2. A Constituição da República Portuguesa no número 1 do seu artigo 41º estatui: A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável. E no número 4 acrescenta: As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

Ou seja, a liberdade religiosa pode-se declinar em duas vertentes: o direito pessoal de cada um a praticar a sua religião e o direito social das religiões de se organizarem livremente. Quer a minha liberdade de praticar uma religião, quer a liberdade de cada religião se organizar, são direitos fundamentais consagrados pela Constituição.

A mesma Constituição também prevê, no seu artigo 19º, a possibilidade de alguns direitos serem suspensos em caso de declaração de Estado de Emergência, mas exclui dessa possibilidade o direito à liberdade de religião.

É assim bastante discutível que a proibição de celebrações religiosas públicas fosse possível tal como foi declarada no Estado de Emergência das últimas semanas. De facto o Governo podia proibir eventos públicos em geral, ou ajuntamentos de pessoas, mas é duvidoso que pudesse de facto proibir celebrações religiosas.

Mas se durante o Estado de Emergência a questão ainda era discutível, chegando agora (enquanto escrevia este artigo acabou o Estado de Emergência) a declaração de calamidade, não há qualquer discussão possível. Um acto administrativo, baseado numa lei ordinária, não pode evidentemente restringir um Direito constitucionalmente garantido.

Por isso quando António Costa anunciou que as celebrações religiosas só voltariam no fim do mês, fez uma declaração para a qual não tinha poder. Como diz a Constituição, as igrejas são separadas do Estado e são livres na sua organização. Não estando a Constituição suspensa, sendo Portugal um Estado de Direito, o Primeiro-Ministro tem tanto poder para declarar quando começam as celebrações religiosas como para dizer o que vai ser o jantar cá em casa!

3. Dirão alguns que isto é um pormenor, que assim como assim os bispos estão de acordo com a data, que não vale a pena perder tempo com bagatelas diante da crise em que estamos.

Mas é precisamente porque vivemos uma crise que é essencial garantir o respeito pelo Estado de Direito. A teoria de que o bem maior tudo justifica, até o atropelo da Constituição e dos Direitos Fundamentais, abre a porta a que o poder do Estado não tenha limites. Se a crise justifica que se ignore a Constituição quanto ao direito à religião, o que impede que mais tarde o Estado venha a ignorar outros direitos? Se o limite ao poder já não é a Lei nem a Constituição (já nem falo da Moral) mas apenas as eventuais repercussões eleitorais, o que impede o Governo de fazer o que bem entende? Os cidadãos não são obrigado a confiar na boa fé do Governo. Não temos de estar dependentes dos caprichos do executivo.

4. Eu obedeço ao meu bispo. E confio que a data que o meu bispo escolher para o regresso das Missas públicas será a melhor decisão. Posso não concordar com essa decisão, posso não a perceber, mas sigo e obedeço. E assim procuro dar a Deus o que é de Deus.

Mas recuso-me a dar a César o que é de Deus. O Governo pode decidir sobre eventos públicos ou sobre a quantidade de pessoas por m2, mas não pode decidir quando voltam as Missas públicas. Esse poder só os bispos é que têm. Não por um direito seu, mas pelo direito que o seu povo tem a viver a sua Fé em liberdade. Por isso, mesmo com a concordância dos bispos, a decisão do Governo permanece como um grave ataque (e ilegal) à liberdade de religião de cada português.