1.
A morte violenta de uma criança às mãos do pai chocou o país. Uma onda de
indignação varreu, justamente, a sociedade. Dificilmente alguém se pode deixar
de revoltar com os factos que foram sendo conhecidos.
Diante
de um crime destes é natural a reacção de transformar o criminoso num monstro.
De facto os seus actos são tão tenebrosos que parecem não ser humanos. Mas esta
reacção, justa e compreensível, significa apenas a desresponsabilização do
criminoso.
Nós
queremos que ele seja um monstro, para puder tranca-lo, deitar fora a chave e
não pensar mais nele. Ou então, numa versão mais “humanista”, tranca-lo para
que seja “curado”. E assim resolvemos o problema do mal: identificamos os
monstros e removê-los da sociedade. E não, não estou a falar apenas dos que defendem a prisão perpétua.
Falo também daqueles que rapidamente tentam reduzir qualquer crime monstruosos
a problema psiquiátrico que pode ser “tratado”.
Mas
não, não falamos de um monstro. Falamos de uma pessoa, tanto quanto sabemos
absolutamente normal, que cometeu actos monstruosos. Não é uma pessoa aparte,
mas um como nós. Um como nós que usou a sua liberdade para o mal. Por isso
alias é que deve ser punido. Se de facto fosse um monstro estava apenas a fazer
o que lhe é natural.
E
isso é o que nos assusta. Perceber que a luta entre o bem e o mal não se trava
em trincheiras, mas no coração de cada homem. Podemos, e devemos, como é
evidente combater aqueles que cometem más acções. Mas só podemos lutar contras
as consequências de uma luta que se trava, antes de mais, no coração de cada
homem.
Por
isso, a conversa dos “monstros” ou dos “psicopatas” serve para nos aliviar, mas
não
resolve o problema.
2.
Este crime trouxe de volta o debate sobre a prisão perpétua. Temos assistido a
dois tipos de argumentos: a) evitar este tipo de crimes; b) que é a única
punição justa.
O
primeiro argumento é razoável. Se de facto a prisão perpétua evitar a morte de
uma criança, então parece-me totalmente razoável que seja aplicada. O problema
é que não há nenhuma evidência que assim seja. Vários países no mundo têm
prisão perpétua, assim como pena de morte. E não há nenhum dado que indique que
este tipo de crimes, seja menor nesses países por causa disso. Um adulto capaz
de matar uma criança, ainda mais, um pai capaz de fazer mal a um filho, infelizmente
não se deixa deter pelo pensamento de que poderá apanhar uma pena mais severa.
Quanto
a ser uma punição justa: não é. Não é porque é sempre pouco. Não há qualquer
pena que seja justa por matar uma criança. Seja prisão perpétua, seja pena de
morte, seja a tortura até à morte. Está sempre aquém do mal de matar uma
criança.
O
fim da pena não é apenas punir, nem apenas salvaguarda a paz pública (embora
este dois fins não possam, nem devam ser ignorados) mas também a regeneração.
Uma justiça que apenas procura punir, sem regenerar, é uma justiça contrária à
dignidade humana. É uma justiça vingativa, que nega ao criminoso a sua
humanidade. Dirão que foi o próprio que o fez, quando cometeu o crime. Mas a
verdade é que a dignidade é inerente ao Homem, mesmo aqueles que praticam actos
monstruosos. E mesmos esses têm direito a regenerar-se.
Por
isso não acredito numa pena que apenas serve para vingar.
3.
Como disse no ponto anterior, aumentar as penas de prisão para crimes dentro da
família não resolve o problema. Quando chegamos à discussão da pena, quer dizer
que o crime já aconteceu, o mal já está feito. Para proteger as crianças é
preciso que o debate seja feito a jusante: como prevenir estes crimes.
Evidentemente
que é preciso mais meios para a Segurança Social, para acompanhar as crianças
em risco, para acompanhar as famílias. Mas há um problema estrutural na nossa
sociedade relativamente à família que não se resolve com melhor “fiscalização”
da mesma.
Há
uma cultura reinante de egoísmo e de egocentrismo, que evidentemente é contrária
à família. A ideia que cada um é mais “eu”, mais “livre” se viver sem qualquer
laço que o prenda ou restrinja.
A
família, por sua natureza é contrária a esta ideia. O casamento exige sacrifício,
a paternidade restringe a nossa autonomia. O amor, especialmente na família, é
a doação de si mesmo. Se eu amo o outro, então desejo o seu bem, e estou
disposto a sacrificar o meu bem pelo seu. Se assim não for, então não é amor,
mas a satisfação egoísta do meu desejo de afecto.
E
nada disto nos faz menos “eu”. Porque se o meu destino é com a minha mulher, então
o que eu faço para que o casamento funcione não me diminui, pelo contrário,
completa-me. O mesmo com os filhos.
Infelizmente
isto é cada vez mais estranho à sociedade. Cada vez mais a família é feita de
direitos individuais (a minha felicidade, a minha liberdade, a minha
realização) em choque. E por isso já não se valoriza o valor da família, como
um bem em si mesmo.
Aliás,
isto é cada vez mais visível na lei. Hoje o Direito da Família já não existe
para proteger a família, mas para proteger os direitos individuais contra a
família.
O
divórcio express, as disputas de poder paternal que só pensam nos
direitos dos adultos, a desvalorização do casamento. Tudo isto degrada o papel
da família.
Por
isso não podemos estranhar que cada vez mais haja violência nas famílias. Se o
outro na família é um limite à minha liberdade e não um bem, se outro restringe
a minha liberdade, a minha autonomia, então é natural que em vez do amor cresça
o ódio.
Para
combater a violência na família, mais do que agravar a penalização, é preciso começas
a valorizar, social e juridicamente, a família. É preciso criar uma verdadeira
cultura familiar. Se não continuaremos a lamentar o mal em vez de o prevenir.
4.
Tem sido nojento assistir ao espectáculo de necrofilia à volta deste crime. É
evidente que há órgãos de comunicação social piores que outros, mas poucos resistem a chafurdar em todos os aspectos deste crime. Os actos são
descritos com pormenor, ouvem-se os especialistas, fazem-se debates, entrevista-se
os familiares, os vizinhos, os populares. Assistimos em directo à profanação da
memória desta criança. E não é em nome da informação, mas simplesmente em nome
das audiências.
Mas
o problema não está (apenas) nos jornalistas. Se eles o fazem é porque há um
publico que consome. Um púbico que avidamente consome os pormenores macabros
deste crime como se de uma série criminal se tratasse. Que debate o assunto com
a mesma indignação com que debate a bola. Um público ávido de emoções, e que
gosta da indignação que estes casos geram.
Não
é por acaso que não referi o nome da pobre criança que foi morta. Nem foi por acaso que não coloco aqui a sua fotografia. Bem sei que isso me traria mais
reacções e mais leitores. Mas recuso-me a aproveitar-me desta desgraça. A usar a
vítima como objecto para cinco minuto de fama.
Que
se escreva, que se debata, que se ajuíze, que se informe. Tudo isso é
necessário e útil. Mas por favor, parem com o espectáculo e com o aproveitamento
à volta deste crime. A família da vítima, mas sobretudo a própria vítima, tem o
direito a não ser usados para alimentar audiência, egos e estados de espirito.
Tenho-me recusado a ler os vários artigos que me vêm sendo sugeridos pela CS precisamente porque desde logo percebo que se limitam a explorar a tragédia. Parabéns por este artigo, José Maria, inteligente e profundamente humano, que coloca a questão com realismo e dá uma análise que vai além do imediato
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