domingo, 3 de maio de 2020

Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus




1. A resposta de Jesus sobre a quem se devia pagar imposto, se ao Templo se a César, é provavelmente uma das suas frases mais conhecidas. Quando questionado Jesus respondeu: de quem é a face que aparece na moeda? Respondem-lhe que é de César. Então o Messias diz, dai pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Jesus estabelece um princípio claro até então desconhecido: o de que a religião era independente do poder. Cristo é o primeiro a separar a Igreja do Estado.

E essa luta será uma constante da história da Igreja. A historiografia moderna, profundamente anti-católica, faz questão de confundir a Igreja e o poder durante parte da história da Europa. Esta versão da história ignora por completo a luta da Igreja pela sua liberdade contra o Poder Temporal, que tentou utilizar a Igreja como sua extensão. Os momentos em que a Igreja e o Poder estiveram juntos, foram em regra por escolha do Poder, com a Igreja submetida.

Em Portugal foi a resistência dos bispos portugueses que conseguiu a separação entre a Igreja e o Estado, e assim garantir a liberdade da Igreja. A recusa dos bispos em aceitar a submissão à Lei da Separação (que não separava coisa nenhuma, antes regulava de maneira estrita a vida da Igreja) fez a verdadeira separação da Igreja do Estado. O preço pago foi alto (todos os bispos foram desterrados, perderam-se os Paços, Igrejas, seminários, etc.) mas foi assim que a Igreja em Portugal se libertou do jugo do Estado: desobedecendo à Lei, resistindo ao Governo.

A Igreja sempre reconheceu que cabe ao Poder legítimo governar a sociedade. E que os cristão tem obrigação de lhe obedecer: dai a César o que é de César. Mas também sempre foi clara que “a Deus o que é de Deus”: não cabe ao Estado governar a Igreja. A separação da Igreja e do Estado não significa apenas que a Igreja não se mete no governo, significa também que o Estado não se mete na Igreja.

2. A Constituição da República Portuguesa no número 1 do seu artigo 41º estatui: A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável. E no número 4 acrescenta: As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

Ou seja, a liberdade religiosa pode-se declinar em duas vertentes: o direito pessoal de cada um a praticar a sua religião e o direito social das religiões de se organizarem livremente. Quer a minha liberdade de praticar uma religião, quer a liberdade de cada religião se organizar, são direitos fundamentais consagrados pela Constituição.

A mesma Constituição também prevê, no seu artigo 19º, a possibilidade de alguns direitos serem suspensos em caso de declaração de Estado de Emergência, mas exclui dessa possibilidade o direito à liberdade de religião.

É assim bastante discutível que a proibição de celebrações religiosas públicas fosse possível tal como foi declarada no Estado de Emergência das últimas semanas. De facto o Governo podia proibir eventos públicos em geral, ou ajuntamentos de pessoas, mas é duvidoso que pudesse de facto proibir celebrações religiosas.

Mas se durante o Estado de Emergência a questão ainda era discutível, chegando agora (enquanto escrevia este artigo acabou o Estado de Emergência) a declaração de calamidade, não há qualquer discussão possível. Um acto administrativo, baseado numa lei ordinária, não pode evidentemente restringir um Direito constitucionalmente garantido.

Por isso quando António Costa anunciou que as celebrações religiosas só voltariam no fim do mês, fez uma declaração para a qual não tinha poder. Como diz a Constituição, as igrejas são separadas do Estado e são livres na sua organização. Não estando a Constituição suspensa, sendo Portugal um Estado de Direito, o Primeiro-Ministro tem tanto poder para declarar quando começam as celebrações religiosas como para dizer o que vai ser o jantar cá em casa!

3. Dirão alguns que isto é um pormenor, que assim como assim os bispos estão de acordo com a data, que não vale a pena perder tempo com bagatelas diante da crise em que estamos.

Mas é precisamente porque vivemos uma crise que é essencial garantir o respeito pelo Estado de Direito. A teoria de que o bem maior tudo justifica, até o atropelo da Constituição e dos Direitos Fundamentais, abre a porta a que o poder do Estado não tenha limites. Se a crise justifica que se ignore a Constituição quanto ao direito à religião, o que impede que mais tarde o Estado venha a ignorar outros direitos? Se o limite ao poder já não é a Lei nem a Constituição (já nem falo da Moral) mas apenas as eventuais repercussões eleitorais, o que impede o Governo de fazer o que bem entende? Os cidadãos não são obrigado a confiar na boa fé do Governo. Não temos de estar dependentes dos caprichos do executivo.

4. Eu obedeço ao meu bispo. E confio que a data que o meu bispo escolher para o regresso das Missas públicas será a melhor decisão. Posso não concordar com essa decisão, posso não a perceber, mas sigo e obedeço. E assim procuro dar a Deus o que é de Deus.

Mas recuso-me a dar a César o que é de Deus. O Governo pode decidir sobre eventos públicos ou sobre a quantidade de pessoas por m2, mas não pode decidir quando voltam as Missas públicas. Esse poder só os bispos é que têm. Não por um direito seu, mas pelo direito que o seu povo tem a viver a sua Fé em liberdade. Por isso, mesmo com a concordância dos bispos, a decisão do Governo permanece como um grave ataque (e ilegal) à liberdade de religião de cada português.

1 comentário:

  1. Isto é uma parte de algo mais vasto. As pessoas não estão bem a perceber (ou não querem perceber) o que se está a passar.
    Acima de tudo não relacionam as diferentes medidas que, no seu conjunto, tornam inequívoco que estamos perante uma agenda política. Quando acordarem será tarde demais.
    A posição da Igreja também é lamentável. Se a celebração não é essencial agora, é porque não é nunca. Ou seja, não serve para nada.

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