sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Sobre o relatório dos abusos sexuais: algumas notas

 


 

1. As primeiras palavras sobre o relatório dos abusos de menores na Igreja não podem deixar de ser dor e vergonha. Independentemente das opiniões e até críticas que o relatório possa merecer, não é possível ficar indiferente aos relatos que ali estão. A verdade é que houve menores abusados na Igreja. E esses menores cresceram, para se tornar homens e mulheres profundamente marcados por esses abusos. E durante anos, às vezes décadas, carregaram sozinhos essa dor, não sentido da parte da Igreja o apoio necessário para enfrentar o crime de que eram vítimas.

E essa é talvez a culpa mais terrível da Igreja em tudo isto. Os sacerdotes da Igreja, assim como os seus colaboradores, são homens como todo os outros, e por isso pecadores como todos os outros. Também entre os católicos há criminosos horrendos. Pode-se fazer tudo o que for possível para prevenir os crimes na Igreja, mas não é possível controlar a liberdade humana que pode sempre escolher o mal. Mas a culpa terrível é que as crianças que foram abusadas não encontram na Igreja quem as apoiasse. Ou pelo menos, não acreditaram que pudessem ser ajudadas por quem pertencia à Igreja. E se assim é, alguma coisa teremos feito, para que aquelas pessoas abusadas e feridas no seu mais íntimo, não se sentissem acolhidas e protegidas. E isso não é apenas culpa dos abusadores, mas de todos os que pertencem à Igreja.

2. Quanto ao relatório em si, confesso que tenho alguma dificuldade com o método usado. A denúncia, sem investigação séria, sem contraditório, é muito facilmente manipulável. Por muito que nos pareça improvável que alguém invente um situação destas, a verdade é que não é impossível, nem sequer especialmente difícil fazê-lo. Para além disso, falamos muitas vezes de acontecimento com 40 ou 50 anos, sendo também fácil as confusões. Penso especialmente nos caos de insinuação, referidos no relatório, que a esta distância me parecem difíceis de avaliar.

Dito isto, percebo também que este era o único método possível de dar voz às vítimas. E este é talvez o maior mérito deste relatório: permitir a quem foi abusado na Igreja e nunca se sentiu escutado ou acompanhado, sê-lo. Na maior parte dos casos era impossível uma investigação judicial (veja-se que a maior parte dos casos enviados ao Ministério Público não chegou a ser investigado). E a verdade é que a comissão não revelou nomes, enviou-os à CEP que poderá agora investigar devidamente, seguindo as devidas regras processuais. A alternativa a este método era criar um sistema de tal forma rígido que se tornaria inviável. Por isso, continuando a não gostar do método, percebo que era o possível para permitir às vitimas de abusos na Igreja denunciar o que lhes aconteceu.

3. Os números apresentados pelo relatório são talvez a parte mais problemática. O relatório é de facto útil para compreender melhor o fenómeno dos abusos na Igreja, mas o método usado torna os número pouco fiáveis. Não digo que sejam poucos ou muitos. Por um lado, estimativas baseadas nos relatos das denúncias (que dão os quase cinco mil casos falados), não me parece fiável. Por outro, com certeza que nestes cinquenta anos houve pessoas abusadas que morreram sem que se soubesse do horror que tinham sido vítimas, haverá vitimas que não quiserem voltar a reviver o abuso, ou simplesmente que não acreditasse que valesse a pena denunciar. Por isso o número avançado pode pecar por defeito ou por excesso e dificilmente haverá forma de o confirmar.

Tenho ouvido muitas pessoas declarar que isto é apenas a ponta do iceberg, que haverá muito mais casos do que aqueles que foram revelados. É um palpite como outro qualquer. Eu não me arrisco a dizer se são mais ou menos: os que foram, foram demais e tudo temos que fazer para que não se repitam.

4. Enquadrar os abusos na Igreja no seu contexto histórico e social, não é apenas justo, é também importante para conseguir compreender melhor como evitá-los. Não se trata de desculpabilizar, nem de menorizar o problema, mas sim de entender melhor. Mas é fácil passar desta contextualização para uma comparação: aconteceu em todo o lado, na Igreja até acontece menos, é um problema transversal. E se todas estas afirmações são verdadeiras, a mim não me confortam nada. Sim é verdade que os abusos de menores não são um exclusivo na Igreja, nem há uma especial incidência destes comportamentos na Igreja. Também é verdade que muitos destes casos “encaixam” na mesma dinâmica de outros casos de abusos de menores. Mas a Igreja tem o dever de ser melhor. Sim, somos todos pecadores, mas isso não nos desobriga da obrigação de procurar ser santos. Por isso para mim um abuso na Igreja é bastante mais grave do que noutras realidades.

5. Por fim, um último apontamento: uma das informações mais interessantes do relatório é o facto de a grande maioria dos denunciantes nunca ter feito qualquer queixa do abuso de que foi vítima. Para muitos, este relatório foi a primeira vez que falaram do tema. Evidentemente que isto não impede que tenha havido em alguns casos negligência da parte dos responsáveis da Igreja. Mas não encontramos qualquer indicação da suposta teia de encobrimento que tantos apregoam. A hierarquia podia e devia ter feito mais e melhor, mas a teoria de um grupo de criminosos a abafar crimes continua sem encontrar qualquer sustento factual.

 

 

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