segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Eutanásia: primeiro têm que explicar ao que vêm - Público, 10/02/20

Bruno Maia, conhecido quadro do Bloco de Esquerda e activista da legalização da morte a pedido, publicou recentemente um artigo no PÚBLICO sobre o tema. O artigo é o exemplo perfeito da falácia do espantalho: o activista da eutanásia defende a sua posição através da refutação de argumentos contra a eutanásia que só existem na sua cabeça. O truque é antigo: agita um papão que não existe para tentar tornar defensável a sua própria posição.
A utilização, infelizmente bastante constante, da falácia do espantalho para defender a eutanásia, para além de ser pouco honesta, é também perigosa, porque introduz confusão num debate cuja única utilidade é esclarecer conceitos. Eu confesso que prefiro explicar bem a razão pela qual me oponho à eutanásia do que perder tempo a debater falácias. Infelizmente, há dois pontos do artigo de Bruno Maia que são demasiado importantes para não desmontar a falácia.
O primeiro é quando se tenta equiparar a recusa de tratamento com eutanásia. Esta equiparação é perigosa e introduz confusão onde devia haver clareza. Já há demasiadas pessoas que confundem eutanásia com “desligar as máquinas”, não é preciso que um activista da eutanásia, ainda por cima um médico, venha aprofundar essa confusão. Não acredito que um médico não perceba a diferença entre não insistir num tratamento que não trará qualquer melhoria ou conforto ao doente e administrar-lhe uma substância que tem como única finalidade provocar-lhe a morte. No primeiro caso, o médico reconhece os limites da medicina, no segundo arroga-se em senhor da vida, decidindo que pedidos de morte são atendidos e quais não.



O segundo ponto que me parece especialmente perigoso é quando tenta negar o efeito de rampa deslizante agarrando-se ao facto de que desde que a morte a pedido foi aprovada da Holanda nunca foi alterada a lei. Antes de mais esquece-se de referir a Bélgica, pela razão evidente de que lá a lei já foi alterada para permitir a eutanásia de crianças. Mas também se esquece de referir que o âmbito de aplicação da lei tem vindo a ser alargado. Como a decisão sobre qual o nível de sofrimento a partir do qual é admitida a morte a pedido cabe aos médicos, a não alteração da lei não significa que a sua aplicação não tenha sido alargada. Para além disso, os próprios tribunais têm sido chamados a intervir sobre este assunto, alargando assim o âmbito de aplicação da lei. Por exemplo, embora a lei continue sem prever a morte a pedido para menores de idade, esta tem vindo a ser aplicada com autorização judicial.
Mas não é apenas no alargamento do âmbito da aplicação da lei que se verifica o efeito da rampa deslizante da eutanásia; também no crescimento do número de pessoas que a ela recorre. Assim como, de forma ainda mais grave, o aumento do número de eutanásia a pessoas que não o pediram de forma expressa. Todos estes números e factos são públicos e inegáveis. Escolher um facto fora do contexto para tentar negar o efeito de rampa deslizante não é intelectualmente honesto. Bruno Maia pode prometer que tudo será diferente em Portugal (o que me parece pouco razoável), não pode é fingir que o efeito rampa deslizante não se verificou em todos os países que legalizaram a morte a pedido.
Eu não tenho qualquer interesse em debater a eutanásia. Tenho interesse em debater os cuidados paliativos, a que 70% da população não tem acesso, os cuidados continuados, o apoio aos idosos cada vez mais sós, o estado do Serviço Nacional de Saúde. Ou seja, tudo aquilo que o Bloco tem ignorado nos últimos anos. Quem tem interesse em debater a eutanásia é quem a propõe. Por isso convém que explique ao que vem e não que agite espantalhos.
Eu terei todo o gosto em explicar as razões de quem se opõe à morte a pedido, no dia em que quem a propõe explique as suas. Não entro no jogo dos espantalhos e papões em que Bruno Maia e seus colegas de luta têm tentado transformar esta questão.

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