Caro
Padre João Manuel Silva Sj.,
Li
o seu artigo “Defender a vida entre o princípio e o fim” no ponto SJ e tomo a
liberdade de lhe responder publicamente.
Para
começar deixe-me dizer-lhe que concordo com quase tudo o que escreve. Achei
especialmente pertinente a sua observação «Quando não entendemos a defesa da
vida em termos de cuidado concreto pelo outro, a começar pelo mais frágil, o
aborto e a eutanásia correm o risco de se tornarem bandeiras ideológicas,
critérios absolutos para aferir o nosso grau de “catolicidade”». Aqui descreve
um dos maiores riscos que os movimentos pro-vida actuais correm: o de
transformar a justíssima luta contra o aborto, a eutanásia e outras medidas de
engenharia social numa mera trincheira política. Felizmente o trabalho social
que a maior parte das associações pro-vida desenvolve no apoio às grávidas em
dificuldade, às crianças abandonadas, às mães e crianças sem recursos, até às
mulheres que abortaram, serve de tónico contra essa tentação.
Contudo
ela existe, e existe sobretudo quando estes temas saltam do problema social,
para o problema político. E tenho alertado várias vezes que apoiar medidas
contra o aborto de um político concreto não significa apoiar todas as suas
políticas. Infelizmente o mundo é imperfeito, e por isso vemos políticos contra
o aborto e que ao mesmo tempo desprezam a vida dos que já nasceram por serem de
outra etnia ou de outra nacionalidade. E também porque o mundo é imperfeito,
esses políticos às vezes são a opção menos má de entre as possíveis!
Dito
isto, tenho um ponto de discórdia com o seu artigo. Se é verdade que toda a
vida é igual em dignidade, e por isso ser pro-vida não pode ser defender apenas
a vida dentro do ventre materno ou no seu final, não significa que “a ameaça do
aborto” não seja a principal prioridade. Porque o ponto não é se uma vida vale
menos ou mais, mas qual o grau de ameaça a que está exposta. A vida de uma
criança que ainda não nasceu tem igual valor a da criança que neste momento
atravessa o Mediterrâneo num barco de borracha, ou da família que caminha na
agrura da fronteira entre o México e os Estado Unidos. O que é diferente é o
grau de ameaça a que estão sujeitos.
Os
migrantes, por muitos perigos que corram, têm protecção legal. Infelizmente são
alvo de desprezo de muitos estados, mas não é legal matar um migrante. Um bebé
por nascer em vários países do mundo não tem qualquer protecção jurídica. Em
Portugal até às 10 semanas. Em vários estados dos EUA até ao momento do
nascimento. Por isso é razoável que o problema do aborto seja considerado a ameaça
principal.
Mas
para além disso, a verdade é que o aborto gera uma mentalidade que torna
possível as tais outras injustiças que aponta no seu artigo. Dizia Santa Teresa
de Calcutá “o grande destruidor da paz hoje é o aborto”. E dizia isto porque
considerava o aborto o maior acto de violência de todos: a morte de um inocente
pela vontade de sua mãe. E este acto de violência, hoje de tal maneira
banalizado que se tornou a maior causa de morte do mundo, cria uma mentalidade
de desprezo pela vida humana que permite relativizar qualquer outra forma de
violência sobre o Homem. Se é lícito matar uma criança que ainda nem sequer
nasceu porque é inconveniente, então porque não é licito deixar morrer pessoas
no Mediterrâneo que lá estão por sua vontade? Porque hei-de correr riscos e
gastar meios para salvar famílias que querem entra ilegalmente no meu país?
Considerar
o aborto a maior ameaça a Dignidade Humana não significa um desprezo pelas outras
ameaças, muito pelo contrário. Significa precisamente combater a primeira de
todas as formas de discriminação, a primeira de todas as formas de violência, a
primeira de todas as formas de exploração, de violação da natureza e de exclusão.
Por
fim, deixe-me apenas discordar de mais um ponto do seu artigo: quando diz que a
grande mobilização em torno das causas públicas dos católicos tem sido apenas
em torno do aborto e da eutanásia. Se é verdade que este dois temas geraram
grandes movimentações cívicas (ainda há pouco mais de um mês éramos mais de
onze mil na Caminhada pela Vida em cinco cidades do país), parece-me injusto menorizar
o empenho dos católicos em tantas outras causas públicas. Diariamente são
milhares os católicos empenhados, em instituições católicas e laicas, que
percorrem as ruas do país em apoio aos sem-abrigo, que visitam doentes nos
hospitais, que entregam refeições a quem tem fome, que ajudam grávidas e jovens
mães, que recolhem alimentos para instituições, que ajudam na reconstrução de
casas, ou que simplesmente dão o seu tempo para estar com quem precisa. Será
sem dúvida um trabalho menos visível, mas essencial para tantos milhares de
pessoas que dependem destas ajudas. Pensemos que ainda este fim-de-semana foi a
recolha de alimentos do Banco Alimentar, que sendo laico, nunca o conseguiria
fazer sem o empenho de milhares de católicos que ocuparam supermercados de
norte a sul do país.
Despeço-me
pedindo a sua bênção e a sua oração.
José
Maria Seabra Duque
Coordenador-Geral
da Caminhada pela Vida.
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