domingo, 3 de novembro de 2019

Caminhar por todas as vidas.



Cara Teresa,

li o seu artigo sobre a Caminhada pela Vida e devo dizer que fiquei muito triste com o que escreveu. Infelizmente parece-me que parte de um preconceito contra aqueles que no dia 26 de Outubro deram um pouco do seu tempo para lutar pelo que acreditam.

De alguma maneira parece achar que o facto de nos manifestarmos publicamente contra o aborto e a eutanásia esgota toda a nossa intervenção cívica em defesa da vida. O que só quer dizer que ignora que muitos daqueles que colaboram ou simplesmente participam na Caminhada pela Vida estão bastante habituados a dar parte do seu tempo para ajudar os outros. Penso em muitos daqueles que comigo trabalharam na Caminhada e que são voluntários em bairros sociais, que participam em programas para renovar habitações de pessoas em dificuldade, que dão explicações a crianças pobres, que já fizeram voluntariado no estrangeiro, que ajudam em instituições que apoiam crianças, etc. São centenas, se não milhares, aqueles que para além de participar uma vez por ano nesta Caminhada, nos restantes 364 dias defendem a dignidade da vida humana dando parte do seu tempo para apoiar quem precisa.

Para além disso, ignora o trabalho de tantas instituições pró-vida que estão no terreno e que apoiam grávidas em dificuldade, crianças abandonas, famílias pobres. Instituições que acolhem, que dão formação profissional, que dão apoio jurídico, que providenciam bens materiais, ou que simplesmente aconselham mulheres que vão ser ou já são mães. E deixe-me dizer que de entre estas mulheres, muitas são imigrantes que só encontram apoio nestas instituições.

E ainda na sua descrição do que seria este povo pró-vida que sai à rua, fala sobre raparigas católicas americanas que abortavam por isto e por aquilo e que depois iam manifestar-se contra ao aborto. Cara Teresa, deixe-me dizer-
-lhe uma coisa: na Caminhada pela Vida não perguntamos a nenhuma das quase cinco mil pessoas que participaram em Lisboa, ou das quase onze mil que o fizeram em todo o país, sobre a sua vida íntima. Não apontamos dedos, não julgamos. Aliás, de entre as associações que participam neste Caminhada há uma que se dedica em exclusividade a apoiar mulheres que abortaram. Nós caminhamos em defesa da Vida com todos aqueles que o queiram fazer, sem qualquer pretensão de sermos justos ou perfeitos, apenas com desejo de testemunhar que toda a Vida tem dignidade.

Fala também da nossa cegueira relativamente a outras realidades onde a dignidade da Vida Humana não é respeitada. E concordo consigo. Não posso falar pelos milhares que caminharam dia 26, só por mim. Escrevi sobre o drama dos migrantes do Mediterrâneo, e dos migrante nas fronteira do México. Alertei várias vezes, dentro das minhas possibilidades, para aquilo que se passava na Síria. E também para a perseguição aos cristãos no próximo-oriente. E sobre o drama da guerra em tantas zonas de África. Contudo, sem dúvida, não fiz o suficiente. Nunca é suficiente. Os dramas são muitos e o tempo e os recursos limitados.

Felizmente a Plataforma Caminhada pela Vida e as associações pró-vida não são as únicas realidades de luta e apoio à vida que existem. Penso que seguramente conhece a Cáritas (que tanto faz contra a pobreza não só cá, mas como também na Síria e na fronteira do México), a Ajuda à Igreja que Sofre, o Serviço de Apoio aos Refugiados dos Jesuítas e tantas outras obras e realidades que trabalham, cada uma com o seu objectivo e know how próprio, na defesa da dignidade Humana. Lembro-me aliás que, aquando das eleições europeias, o SAR dos Jesuítas fez um inquérito sobre as posições dos partidos relativamente aos migrantes do Mediterrâneo. E lembro-me porque na ocasião tive a possibilidade de defender esta obra quando a acusaram de não falar do aborto. A resposta que dei na altura a esses críticos serve também para lhe responder a si: felizmente que há quem cuide dos refugiados e felizmente que há quem cuide da vida por nascer. Fazermos todos tudo serviria apenas para não se fazer nada.

Dito isto, não posso deixar de lhe perguntar: a si não lhe dói também saber que mais de quinze mil crianças são todos os anos mortas em Portugal antes de nascer? Não lhe dói saber que o aborto é a maior causa de morte no mundo? Não lhe dói saber que no Ocidente a esmagadora maioria das crianças com Trissomia 21 não chega a nascer? Não lhe dói saber que em Portugal há mulheres que abortam porque são obrigadas pelos companheiros, pressionadas pelos patrões, coagidas pela família? Não lhe dói saber que o aborto em Portugal raramente é por vontade da mulher, mas pela falta de apoio da sociedade? Não lhe parece que isto é razão para se sair à rua uma tarde ao ano?

Por fim, cara Teresa, permita-me que lhe diga isto: a Caminhada pela Vida não é confessional. Não é um evento religioso, mas cívico. É verdade que para um católico a vida é especialmente sagrada. É verdade que para um cristão o 5º mandamento encerra bastante a questão. Para além disso, para quem acredita na sagrada escritura que a vida começa na concepção é algo que nós sabemos ainda antes de a biologia o afirmar: "como é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor? Assim que a tua saudação chegou aos meus ouvidos o menino exultou de alegria no meu seio". E que toda a vida tem dignidade já os cristãos o aprenderam com São Paulo antes de o aprenderem na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Mas tudo isto, a que habitualmente chamamos o personalismo cristão, não é apenas uma questão de Fé, é também a base da Civilização Ocidental. A nossa sociedade está fundada sobre o valor intrínseco da vida Humana. Sobre a ideia de que todos, independentemente das suas circunstâncias, somos iguais em dignidade. Aliás, é por essa igual dignidade que o voto é universal e todos os votos têm o mesmo valor. A ideia de que toda a Vida é digna nasce de facto do cristianismo, mas há muito que é património comum sobre o qual se construiu a civilização dos direitos humanos.

Por isso lutar pelo direito à vida das crianças por nascer, lutar pela inviolabilidade da vida humana em todas as circunstâncias não é uma luta dos cristãos, mas a luta por uma sociedade onde a Vida humana é uma realidade acima do Estado e não ao dispor deste.

Despeço-me com a esperança de que para o ano venha caminhar connosco. Se deixar cair o seu preconceito irá ver um povo de todas as idades, de todas as condições sociais, de todas as religiões, que sai em festa à rua para testemunhar que toda a vida tem dignidade.

José Maria Seabra Duque,
coordenador-geral da Plataforma Caminhada pela Vida.

P.S.: Reparei que cita várias vezes o Santo Padre. Chamava à sua atenção para estas citações que aparentemente lhe escaparam:

Sobre o aborto:

Será lícito deitar fora uma vida para resolver um problema? Será lícito contratar um assassino para resolver um problema? Esta é uma questão de direitos humanos e não uma questão religiosa: um ser humano nunca é incompatível com a vida

Sobre a eutanásia:

A eutanásia e o suicídio assistido são uma derrota para todos. A resposta a que somos chamados é nunca abandonar aqueles que sofrem, não desistir, mas cuidar e amar para restaurar a esperança

E por fim, da mensagem que o Santo Padre enviou à Caminhada pela Vida em Portugal em 2017:


Sustentando tal verdade com factos e razões científicas e morais num dramático apelo à razão para ser voltar ao respeito de cada vida humana desde a sua concepção até ao último respiro. Sobre todos os aliados de Deus na batalha contra o aborto, eutanásia e demais atentados à vida humana, Santo Padre invoca a sabedoria e fortaleza da Espírito Santo "Senhor que dá a vida" ao conceder-lhes a sua Bênção Apostólica.

1 comentário:

  1. Muito bom e muito agradecido pelo texto, pela verdade, pela humildade e pela Vida.

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