O Bloco de Esquerda apresentou finalmente este sábado, dois anos
depois de ter lançado uma petição, um ano depois de apresentar um ante
projecto de lei, o seu projecto de lei de despenalização do homicídio a
pedido da vítima e do suicídio assistido (a que eufemisticamente chama
antecipação da morte).
Na operação mediática conduzida pelo BE para apresentação da sua
proposta, publicou José Manuel Pureza um artigo no PÚBLICO sobre o tema.
Segundo o peticionário, relator da petição e redactor do projecto de
Lei, esta proposta tem dois grande princípios:
1. O equilíbrio e o
rigor. Esta lei é só para casos muitos específicos, que serão
rigorosamente apurados. Segundo diz são preciso quatro elementos, que
têm de ser comprovados por três médicos (aquele a quem é feito o pedido,
um médico especialista na patologia e um psiquiatra). Só reunidos os
quatro elementos exigidos pelo BE, comprovados devidamente pelos
médicos, é que então um pessoa tem acesso à morte.
2. O respeito pelos patamares de dignidade que cada um fixou para si
mesmo durante a sua vida. Ou seja, que a dignidade da vida humana não é
objectiva, mas estabelecida por cada um.
Ora, não é preciso ser
especialista em lógica para vislumbrar qual é o problema da proposta do
Bloco: Por um lado diz que respeita os patamares de dignidade que cada
um fixou para si, por outro lado estabelece que só tem acesso à morte a
pedido quem preenche os elementos escolhidos pelo Bloco, elementos esses
que têm que ser comprovados por três médicos diferentes.
Peço
desculpa, mas não se pode afirmar que "é de autoritarismo que se trata
quando ao doente que livre e conscientemente pede a antecipação da morte
porque os patamares de dignidade que se fixou para si mesmo em toda a
sua vida estão irreversivelmente afastados, se responde com um claro
não" e ao mesmo tempo afirmar que "soluções equilibradas são as que
assentam, em primeiro lugar, numa definição muito rigorosa das condições
e requisitos a preencher pelo doente que peça a antecipação da morte."
Afinal, quem define os patamares de dignidade que quer para si, cada
pessoa ou o Bloco de Esquerda?
É evidente, e isso vê-se na
preocupação do BE nas limitações que coloca no acesso à morte a pedido,
que o que está em causa não é a autonomia pessoal. Assim fora e bastava
simplesmente despenalizar o homicídio a pedido da vítima e o suicídio
assistido. O deputado José Manuel Pureza chama autoritário a quem é
contra a eutanásia de doentes terminais, mas pelos vistos ele próprio é o
primeiro a querer limitar o "direito" a definir os tais patamares de
dignidade.
O que está em causa é que resposta dá o Estado aos
doentes terminais que pedem a morte. O Bloco já deixou claro que a sua
posição é que o Estado deve limitar-se a dar-lhes uma morte rápida e
indolor.
Eu confesso que não partilho desta visão liberal da sociedade, onde o sofrimento de uma pessoa é um problema apenas seu, sem que a sociedade procure encontrar uma resposta a esse sofrimento. Não considero que a protecção jurídica que o Estado concede a todos os cidadãos magicamente desapareça com a doença.
Eu confesso que não partilho desta visão liberal da sociedade, onde o sofrimento de uma pessoa é um problema apenas seu, sem que a sociedade procure encontrar uma resposta a esse sofrimento. Não considero que a protecção jurídica que o Estado concede a todos os cidadãos magicamente desapareça com a doença.
Eu acredito no
Estado Social, num Estado que protege os mais fracos e os mais frágeis,
num Estado que na hora de maior sofrimento não se limita a uma injecção,
antes cria condições e mecanismos para aliviar e acompanhar essas
pessoas.
Tem sido marca deste debate, desde a primeira hora, a
tentativa por parte dos políticos que defendem a eutanásia de demonizar
quem deles discorda. Autoritários, extremistas religiosos, totalitários,
foram apenas alguns dos termos com que os deputados a favor da morte
assistida têm vindo a publicamente a descrever quem deles discorda. O
artigo do deputado José Manuel Pureza segue por esse caminho: nós temos
esta proposta, quem dela discorda só pode ser porque é autoritário e
quer impor a sua vontade a todos. Esta visão maniqueísta da realidade
empobrece o debate. Agitar papões como a prisão dos médicos (sendo que
para o deputado Pureza, a prisão de um médico que mate um paciente fora
das condições por si rigorosamente estabelecidas pareça não lhe causar a
mesma comoção) é simplesmente demagógico e contribui para a
desinformação sobre o tema.
Uma lei que permite ao Estado
estabelecer condições em que é legítimo matar uma pessoa porque esta o
pede nunca é equilibrada. Não o é quando o prevê que isso seja possível a
pessoas saudáveis. Não o passa a ser por ser restringida apenas a
pessoas doentes. Equilibrada é a lei que protege a vida de todos os
cidadão, a lei que não abandona os doentes, que não esquece os que
sofrem, que não descarta os moribundos. Equilibrada é a lei que respeita
o principio constitucional de que "a vida humana é inviolável".