Na antiguidade não existia a noção de dignidade
da vida humana. O homem tinha o valor que a sociedade ou o Estado lhe
concediam. Em civilizações mais desenvolvidas, como Roma ou a Grécia, o cidadão
tinha vários direitos e estava razoavelmente protegido. Contudo, esta protecção
não se estendia às mulheres, às crianças, aos jovens antes de se casar, aos
escravos e aos não cidadão em geral.
Em sociedades mais primárias, como por exemplo
nas tribos migrantes germânicas, a vida de cada um dependia da sua capacidade
de acompanhar a migração. Por isso, regra geral, os velhos eram mortos.
Nas civilizações do próximo oriente, onde os
reis eram absolutos, a vida de cada pessoa estava totalmente dependente da
vontade real.
Os sacrifícios humanos eram uma realidade
habitual na Europa, assim como a caça de cabeças, até à conquista romana da
Gália.
Em Cartago, os sacrifícios rituais de bebés pelo
fogo eram também uma tradição, só extinta com o fim da cidade.
Foi o Cristianismo que introduziu na civilização
ocidental a noção de que a vida humana tinha um valor inviolável objectivo. Foi
a ideia de que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança,
juntamente com a ideia de que Deus se tinha feito homem e morrido para que
qualquer pessoa se pudesse salvar, que fez crescer o conceito de que toda a
vida humana, independentemente de qualquer consideração, tinham dignidade.
Evidentemente que esta consciência não se tornou
clara toda de uma vez. A expansão do cristianismo não se fez de uma forma
política, mas sim através da evangelização feita de avanços e recuos. Antes de
mais, a proposta cristã é uma proposta pessoal que convida à conversão pessoal.
A Igreja, sendo uma realidade divina, é
constituída por homens pecadores e imperfeitos. Por isso, à proposta de Cristo
muitas vezes se sobrepuseram cálculos humanos e considerações mundanas, que levaram
a acções, algumas feitas em nome da fé, contrárias à proposta cristã. Mas basta
comparar a Europa cristã medieval com as outras civilizações coevas, para se
perceber que era um espaço de maior liberdade e respeito pelo homem do que
qualquer outra.
A centralização do poder do Estado, a Reforma, a
Contra-Reforma e as guerras religiosas conduziram a uma politização do
cristianismo. A fé passou a ser um facto político, de uniformização nacional,
garante da paz e da ordem. Este facto reduziu o cristianismo a uma conjunto de
valores e rituais, independentes da fé.
Criou-se então um núcleo de valores comuns aos
vários países europeus. Valores esses que se mantiveram mais ou menos
constantes até ao século XIX. A Revolução Francesa marcou um inicio de uma nova
era. Uma ideologia pós-cristã, onde o homem foi substituído pelo povo ou pelo
Estado ou pela Nação. A evolução desta mentalidade pós-cristã foi avançando na Europa em
diferentes direcções e com velocidades diferentes. Mas as consequências foram
tremendas e tiveram o seu ponto mais dramático nos totalitarismos do século XX:
o Comunismo, o Nazismo e o Fascismo.
Mas, ao mesmo tempo, também se desenvolveu uma
outra mentalidade pós-cristã, mais subtil, mas também destruidora. Uma cultura
que utiliza as palavras cristãs (liberdade, dignidade, fraternidade, autonomia)
e lhes dá um novo significado. Foi esta mentalidade que triunfou fulgurosamente
no pós-guerra, sobretudo após o Maio de 68.
Vivemos por isso num tempo em que, sobre o manto
do progresso, voltamos à antiguidade. A um tempo em que a vida humana deixou de
ser um valor objectivo, mas voltou a estar dependente do valor que a sociedade
lhe atribui.
Esta mentalidade começou a instalar-se com a
questão do aborto. Toda a "publicidade" pró-aborto se baseia no facto
de que o embrião necessita de um conjunto de premissas para merecer protecção
jurídica. Já não basta ser vida humana, tem que ter sistema nervoso central, ou
que sentir dor, ou que ter batimentos cardíacos ou mesmo que interagir com os
outros. Ou então, que ter um desenvolvimento perfeito. Se assim não for, então
não tem valor e pode ser eliminado.
O caminho continuou a ser feito com a ideologia
do género que afirma que cada homem é que constrói o seu próprio género, mesmo
contra a natureza, se for preciso, porque o homem (ou seja a sociedade, o
Estado, o poder) tem o poder de se definir a si mesmo.
Por fim, chegámos à eutanásia. E eutanásia vem
no fim porque é uma conjugação das falácias do aborto com as falácias da
ideologia do género.
Do aborto, porque retoma a ideia de que a vida
humana só tem dignidade quando existem um certo número de requisitos. Fora
disso, a vida passa a ser um bem disponível.
Da ideologia do género, porque leva ainda mais
longe a ideia da autonomia. O homem não só tem liberdade para se definir a si
mesmo, como tem liberdade para decidir quando deve morrer. E esse
"direito" deve ser assegurado pelo Estado.
Ora, dois mil anos de história, demonstram que
estas premissas são falsas. A vida humana tem valor e dignidade pelo simples
facto de ser vida; o homem não tem o direito de se violentar a si mesmo; o
Estado não pode nem deve permitir ou executar violência sobre os cidadãos,
mesmo que a pedido dos próprios.
Negar estes princípios é regressar ao tempo em
que o homem era definido pelo poder. Conceder ao Estado o direito de matar quem
sofre, é o regresso à mentalidade bárbara dos povos germânico que eliminavam os
mais fracos para seu próprio bem.
Por baixo de uma retórica glicodoce, de um
discurso que mistura um falso sentimentalismo com uma falsa defesa da dignidade
humana, utilizando e abusando do sofrimento de milhares de pessoas, os
defensores da eutanásia defendem uma sociedade onde a vida humana já não tem
qualquer valor.
A questão que se coloca é: como resistir a este
avanço aparentemente inexorável desta cultura pós-cristã? Como podemos lutar
contra esta nova mentalidade, que nega até as verdades mais elementares?
É evidente que há uma resposta política, que pode
e deve ser dada. Independentemente da hipótese de vitória ser reduzida, é um
dever tentar travar as leis injustas. E por isso, em chegando o momento, iremos
à batalha com todas as nossas capacidades. Mas a verdade é que os proponentes
da eutanásia têm mais dinheiro, mais apoio político e mais influência na
comunicação social do que nós. Por isso a derrota, agora ou daqui a uns anos, é
aparentemente inevitável. E isto não nos deve desincentivar. Porque defender a
verdade é um bem em si mesmo, que não depende do resultado final.
Mas a luta política não chega. Porque o problema
não é político, mas sim cultural. Por isso a pergunta é como é que pudemos
mudar esta cultura, que nega até as maiores evidências?
A resposta é olharmos para o modo como Cristo construiu
a Igreja. No tempo de Jesus havia também enormes problemas políticos:
escravatura, jogos de gladiadores, um sistema tributário injusto, poderes
corruptos, etc. Porém, Jesus não perdeu tempo a pregar a revolução social. Usou
o seu tempo para testemunhar a Verdade. Escolheu uns quantos e disse-lhes para
O seguirem. E assim começou a maior revolução da História.
Por isso, também nós temos que voltar atrás.
Olhar para os primeiros cristãos, olhar para São Bento, olhar para São
Francisco de Assis e São Domingos, para São Francisco Xavier, para São Vicente
de Paulo, para São João Paulo II, para a Beata Teresa de Calcutá e para tantos
outros santos. Eles perceberam que antes de mudar a sociedade é preciso
converter o coração do homem e para isso era preciso, antes de tudo, testemunhar
Cristo, O único capaz de responder plenamente ao desejo humano.
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