Porque Leio Um
Romance.
Quando começo a ler um romance não vou à procura de me edificar
espiritualmente, mas sim de me entreter. O critério que uso é bastante simples:
uma boa história, bem escrita, sobre um tema que me interesse e assim
aproveitar algum do meu tempo livre.
Isto não significa que ignore a importância da literatura religiosa, que é
uma ajuda essencial para a vida da fé. Mas esse tipo de livros tem a sua
função, que é diferente da do romance. Quando leio a Sagrada Escritura, ou um
documento do Magistério, ou simplesmente uma hagiografia faço-o com um
objectivo concreto relacionado com o meu caminho religioso.
Um bom romance não tem essa finalidade. Aliás, um romance que em vez de
entreter tenha a pretensão de edificar, habitualmente não faz nem uma coisa nem
outra, limitando-se a oscilar entre a má literatura e a má teologia.
É evidente que um grande romance não se limita a entreter. Um grande livro
educa-nos, faz-nos crescer. E é isso que realmente distingue um grande
romancista. Contudo a finalidade de um bom romance não é essa, mas sim contar
uma história que interessa ao leitor e isso naturalmente entretém.
Por isso, se é verdade que o que eu procuro num romance é entretenimento,
também é verdade que o que o que torna um livro realmente interessante é o que
encontro para lá do entretenimento.
O teste para distinguir um bom de um mau romance é simples: se o lemos uma
só vez ou se nunca nos cansamos de o reler. É como quando encontramos uma
pessoa. Se ela simplesmente nos faz passar um bom momento não nos voltamos a
lembrar dela até a voltarmos a encontrar. Se ela passar todo o encontro a
enfadar-nos com a sua doutrina a próxima vez que o virmos, fugimos. Mas se,
para além de nos entreter, nos prende com as suas palavras então iremos à sua
procura e não nos cansamos da sua companhia.
Para mim o grande exemplo disto é O
Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien. Quando o li pela primeira vez não
procurava nada mais do que uma boa história de acção e de fantasia. Porém
aquilo que encontrei na obra fez-me voltar a ela vezes sem conta.
Foi com este livro que ficou claro para mim como é que um romance pode
verdadeiramente ser edificante. Existem muitos aspectos que podia apontar, mas
resumo esta minha experiência em três pontos: a identificação com a minha vida;
a abertura à realidade; o despertar do desejo.
1. A Identificação
Com a Minha Vida.
O primeiro facto que me atrai em O
Senhor dos Anéis é que me é possível identificar com as personagens. O que
se pode considerar algo de muito estranho se considerarmos que é uma obra de
ficção que se desenrola num mundo fantasioso onde existem elfos e anões,
hobbits e feiticeiros.
De facto nada está mais distante do realismo literário do que a obra de
Tolkien. O objectivo do professor de Oxford era escrever um conto de fadas e
foi isso que fez. O livro é a história da destruição do Anel forjado por
Sauron, um ser maléfico que cria dominar a Terra Média, o mundo onde se desenrola
a acção. Para isso os heróis terão que enfrentar diversos perigos, em jornadas
duras e batalhas épicas, até chegarem ao coração do reino de Sauron e destruírem
o Anel.
Onde se vê o génio de Tolkien é no facto de, mesmo num mundo totalmente saído
da sua mente, ser possível identificarmo-nos com as personagens, mesmo
tratando-se de um anão.
Um dos exemplos mais claros é a relação de cada personagens com o Anel.
Este objecto maligno tenta todos aqueles que dele se aproximam. E fá-lo
deturpando os desejos de cada personagem. Ao nobre guerreiro mostra-lhe a
vitória do seu país sobre aqueles que o ameaçam; ao humilde jardineiro hobbit
promete-lhe a terra como seu jardim; à grande senhora élfica oferece-lhe o
poder para derrotar Sauron. A todos tenta seduzir e atrair para o mal,
manipulando-os. E todos eles reagem à tentação de diferentes maneiras: um
deixa-se cair para depois se redimir com o sacrifício pessoal, outro resiste
com a sua humildade, a última evita-o com a sabedoria.
É evidente que nunca encontrei um anel que me tentasse conduzir ao mal. Mas
a experiência da tentação do mal está bem presente na minha vida. Sobretudo do
mal que se apresenta trasvestido de bem. Também a experiência da queda, da
redenção e da resistência são bem reais.
O facto de me reconhecer nos dramas e limites das personagens aproxima-me
deles, cria um maior interesse. De tal maneira que vibro com as suas aventuras
2. Abertura à
Realidade
A identificação com as personagens só se torna possível se a sua história
tiver pontos de semelhança à minha. O que me leva a aproximar de uma personagem
é poder reconhecer-me nela.
Por isso, um bom romance não nos faz fugir da realidade, mas sim voltar a
olhar para ela. Porque o que me atrai na personagem, não é a ficção, mas o que
ela tem de real. É poder reconhecer nela, mesmo sendo uma figura mítica, um
fragmento de humanidade, com os mesmos desejos e limites que eu.
Para mim em O Senhor dos Anéis isso
fica claro na seguinte passagem, tirada do segundo volume, As Duas Torres, no momento em que um grupo daqueles que tinham como
missão destruir o anel se cruza com uns cavaleiro do reino de Rohan.
"- Como pode um homem decidir o que fazer em tais tempos?
- Como sempre decidiu - respondeu Aragorn. - O bem e o mal não mudaram do
ano passado para este, e tão-pouco são uma coisa entre elfos e anões e outra
entre homens. Compete ao homem saber discerni-los, tanto na Floresta Dourada,
como em sua própria casa."1
Esta resposta de Aragorn é tão válida na Terra Média, como na realidade. É
um conselho tão útil para a personagem que o recebeu como para mim.
Um romance para realmente ser espiritual não pode fugir da realidade.
Porque não existe nada de mais espiritual do que ela.
O problema não é se há ou não um Bem na realidade, mas se eu olho para ele
ou não. O que me marca num grande romance é que me coloca diante da realidade e
me diz que é possível um final feliz. Que é possível que alguém tão pequeno e
mísero como eu ser um herói.
E isso faz-me então desejar olhar para a realidade como aquelas personagens
olham. É assim que um romance pode ser verdadeiramente espiritual, quando
alarga o meu olhar sobre a realidade.
3. O Despertar do
Desejo.
Num grande romance a abertura à realidade tem como consequência despertar o
desejo. Claro que a realidade pode ser dura e negra. Contudo, desafia-nos
constantemente a desejar mais do que ela.
E isso é o que em última instância um grande romance faz: desperta em nós o
desejo do grande e do heróico, o anseio por um mundo plenamente Belo e Justo.
Em última instância, faz vir ao de cima o grito pela eternidade.
Assim acontece com O Senhor dos Anéis.
É impossível lê-lo e não desejar também partir numa grande demanda.
"É melhor amar primeiro aquilo que fomos destinados a amar: precisamos
de começar por algum lado e ter algumas raízes, e o solo do Shire é profundo.
No entanto, há coisas mais fundas e mais altas, e nenhum jardineiro podia
cuidar o seu jardim em paz, como se costuma dizer, se não fossem elas, quer
saiba da sua existência quer não."2
Este trecho, de O Regresso do Rei,
terceiro volume do livro, exemplifica com clareza este ponto. Só é possível
olhar paras as coisas grandes se começarmos por amar as coisas pequenas que
estão diante de nós. Porque é o amor pelas coisas pequenas que nos leva ao
desejo das coisas grandes. É o amor pela colina do campo da nossa infância que
nos leva a desejar conhecer as grande montanhas.
Por isso um romance que me leva a olhar para a realidade, para a minha realidade,
leva-me a desejar que seja também ela cheia de coisas grandes.
Conclusão
Os romances que mais me interessaram, aqueles que eu leio e releio sem
parar, são os que me mostraram que é possível que o quotidiano se torne
heróico. Como no caso daqueles pequenos hobbits, Frodo e Sam, que deixaram o
seu pequeno mundo, onde tudo era sossegado e a comida, tal como a bebida, não
tinham fim, e acabaram no coração do reino de Sauron.
"É uma coisa perigosa sairmos da nossa porta Frodo', costumava dizer.
'Entramos na Estrada e, se não dominamos os nossos passos, nunca se sabe para
onde podemos ser arrastados. Já reparaste que este é o próprio caminho que
atravessa a Floresta Tenebrosa e que, se o deixares, poderá levar-te para a
Montanha Solitária ou até para lugares mais distantes e piores?' Costumava
dizer isso no carreiro existente defronte da porta principal do Fundo do Saco,
sobretudo depois de ter dado um longo passeio". 3IdA pg 95
E assim é também com os grande romances.
José Maria Seabra Duque
1 in O Senhor dos Anéis, II - As Duas
Torres, pag. 42, TOLKIEN, J.R.R., Publicações Europa América
2 in O Senhor dos Anéis, III - O Rgresso
do Rei, pag. 156, TOLKIEN, J.R.R., Publicações Europa América
3 in O Senhor dos Anéis, I - A Irmandade
do Anel, pag. 95, TOLKIEN, J.R.R., Publicações Europa América